sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Já pensou em quem votar nas autárquicas?

As forças políticas distinguem-se por objectivos, práticas, organização, afectação de novos membros, etc. A conduta dos partidos num dado momento depende de tudo isto, neste factores encontra-se a justificação para muito do que acontece, por exemplo na escolha dos candidatos aos orgãos do poder local.
O Partido Comunista renova-se fechando-se e procurando nos seus membros novas escolhas e velhas confirmações. Os mais pessimistas dirão que estagnou, os outros dirão que está numa atitude defensiva, de aposta na estabilidade. Aos candidatos interessa manter a chama.
O Bloco de Esquerda com uma votação superior nas europeias, mas com uma organização incipiente quedou-se nas boxes. Pouco vocacionado para o poder local, mas atraindo a juventude, caber-lhe-ia o papel de manter um bom extracto da população integrado na luta política. A abertura da juventude, a dispensa das subserviências que campeiam nos outros partidos, criaria uma outra perspectiva de olhar a vida pública.
Também o Partido Socialista falhou na organização. Este partido tem-na não a tendo. Porque a organização também serve para perpetuar erros, para prolongar inércias, para tornar a apatia uma falsa base da estabilidade. É uma organização fechada, endogámica, em que os membros alternam entre períodos de nojo e períodos de um activismo que porém não ultrapassa a pesca à linha.
Ou há peixe na linha ou novo período de nojo vem aí. Vivem angustiados por estarem num partido vitima da chacota quando está no poder e de excessivas expectativas quando na oposição. Não cultivam o emblema do partido, a solidariedade, e amaldiçoam a sua ingratidão, como se tivesse de lhes dar tudo.
Irrelevante para a captação de votos para o todo nacional, quem vota no partido fá-lo à revelia da estrutura local. Porque não tem sido útil ao poder local tem sido vítima do voto útil nas guerras locais passadas entre o CDS e o PSD e perspectiva vir a sê-lo na luta que se avizinha.
As perspectivas de renovação são nulas sejam a nível interno sejam pela captação de novos membros. Decerto que os membros locais vão um dia atribuir a culpa à pouca importância que o José Sócrates tem dado às estruturas partidárias mas é tão só revelador do vazio de ideias, do conformismo, do imobilismo. O PS local é um deserto com umas “estrelas cadentes” a luzir lá dentro, de que se não conhece uma ideia e que tudo devem ao PS nacional.
O PSD local é o paradigma da instabilidade permanente. Bem implantado na classe mercantil, no funcionalismo, no meio agrícola tem sempre gente activa, dentro e fora do partido, com a camisola bem agarrada ao corpo, pese embora o desconsolo dos mais clubistas que só celebram vitórias longínquas. A maioria dos seus membros bole muito mas é politicamente amorfa e sem valor.
Votam maioritariamente no PSD nacional mas a nível local, quando têm perspectivas de se alcandorarem ao poder todos se aliam contra eles. Traições também lhes não faltam. Até neste momento, uma ocasião única para apelar às suas hostes no sentido de se unirem à volta de uma candidatura inovadora, a traição continua a corroer o ânimo dos seus adeptos.
Nunca repetiu uma candidatura em duas eleições sucessivas e viu falhada a sua tentativa de pescar na casa do vizinho CDS há vinte anos atrás no auge da arrogância cavaquista. Tem uma história triste de sucessivos líderes perdedores e de eminências pardas sempre presentes, mas ausentes para assumir as derrotas. Tem uma história triste nas gestões partilhadas com o CDS em diferentes ocasiões, com a AD ou sem a AD, formal ou informalmente.
No último mandato foi colaboração no Executivo camarário, oposição na Assembleia Municipal, manifestando o exemplo típico de uma liderança bicéfala. O actual líder será a esperança de pôr termo a esta situação pela ausência aparente de compromissos com os velhos lobbies herdeiros do carrascão e do chã das cinco. Chegar-lhe-ia os votos sociais-democratas para ganhar, pelo que terá que saber vestir a camisola e apelar à quebra da subserviência que muitos dos seus correligionários ainda têm perante as forças retrógradas, ruralistas, paternalistas e castradoras que o CDS representa.
Este CDS local já não tem qualquer semelhança com o nacional nem com o que localmente lhe esteve na origem. Resistiu à arrogância cavaquista, solidificou-se numa heterodoxia original e de índole pessoal. O CDS aproveitou as divergências alheias, congregou voto de esquerda com voto de direita tradicional e a partir de Daniel Campelo aproveitou o mediatismo, mesmo que patético, de lutas perdidas e outras de duvidoso ganho.
O actual candidato geriu bem o seu perfil de escudeiro, numa corte em que os papéis estavam bem definidos com peões de brega, bobos da corte e outros cargos menores. A sua tentativa de passagem a chefe da orquestra manifesta-se muito difícil. Aparentemente, maugrado as lutas intestinas, os indefectíveis parecem permanecer firmes na defesa da fortaleza, as muralhas não aparentam um desmoronar eminente.
A adesão a este projecto que seria chamado a gerir o espólio do deslumbramento final de Daniel Campelo, os ímpetos napoleónicos do resistente Gaspar Martins, é uma incógnita. No fundo quem nele acreditar é porque acha que Daniel Campelo continuará como a eminência parda a dar coesão a uma equipa disforme, desconexa e sem outro cimento que não o oportunismo de querer navegar num barco vencedor. A pureza ideológica não levaria o CDS a lugar nenhum e com Daniel Campelo uma certa heterodoxia funcionou. Mas tal deve-se à sua liderança natural, a erros alheios e a um outro conjunto de circunstâncias exteriores favoráveis.
Para manter a sigla, o CDS tradicional continuou a abdicar da sua afirmação. Na prática o executivo de Daniel Campelo sempre se manifestou mais favorável às políticas socialistas do que a quaisquer outras. Poder-se-ia ver aí aquela democracia cristã que a nível europeu deu origem, numa estreita aliança com os partidos socialistas, à Europa Comunitária. Mas haverá uma doutrina que sobreviva a Campelo? Não virá ao de cima o que é mais próprio de cada elemento desta controversa equipa? É caso para eles próprios estarem apreensivos.

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

A luta do amor contra a indiferença e o ódio

Numa visão optimista do mundo podemos partir do princípio de que todos aceitamos que cada um de nós seja uma força difusora de amor pelo mundo no pressuposto de que o amor é o sentimento mais belo e que na sua plena vivência corresponderá ao estado de perfeição da humanidade. Quem faz apelos nesse sentido decerto que também o “sente” e que o faz com sinceridade. Mas não estamos livres de muitos, na ocasião em que o fazem, o estarem a fazer com cinismo. E não haverá pessoas avessas ao amor?
Não falta quem pense ser livre de fazer o que quer, desde ser indiferente a espalhar o ódio. Melhor será então ser pessimista quanto à nossa natureza. Pelo menos devemos estar precavidos contra os comportamentos dúbios das pessoas sem que nos deixemos arrastar pela suspeita permanente. No entanto, se todos reconhecemos que estamos muito longe de ser exemplo de virtude, achamos poder contribuir para que quem puder viva mais o amor.
Uma manifestação de amor é também conseguir compreender os outros e desculpabilizá-los se for caso disso. Em primeiro não podemos duvidar da sinceridade de quem faz apelos ao, pese embora não deixem na sua vida prática de contribuir para a incompreensão, para litígios pessoais e colectivos, para que se difundam sentimentos como o ódio. Digamos que, nos intervalos dos momentos em que os corações se abrem, sobra muito tempo para a destilação do fel. A contradição da vida é que nem sempre a vontade chega para seguirmos um caminho mais perfeito. Todos nos podemos interrogar onde, se não é em nós, residirá a fonte de tanto mal.
Algum defeito original ou o resultado da acumulação de sucessos negativos no passado? Se potencialmente possuímos tanto amor porque fazemos tão pouso uso dele? Porque nos esquecemos e nos deixamos levar num enredo do quem não conhecemos o início e o fim? Porque tão poucas coisas dão certas e as que dão tudo fazemos para não acreditar nelas? Porquê a nossa dualidade? Questões que são quase todas suficientemente óbvias para obter respostas triviais.
Nós acumulamos ressentimentos, quando não ódios e é isso que nos torna indisponíveis para um amor constante. Como é natural preocupamos mais com aquilo que rejeitamos do que com o que nos agrada. Damos mais importância aos inimigos que aos amigos. Temo-los em conta para os vencer e não para os melhorar. Pouco nos preocupamos em apaziguar o ódio que campeia. É muito mais fácil pôr o nosso ódio em cima do alheio.
O amor que podemos estar prontos a dar será em estado puro? Encontrá-lo assim será improvável. É na vida que aprendemos o amor nos seus fundamentos mas depressa o relativizamos. No enredo em que a nossa vida particular se torna o amor pode ter muitas facetas, ter dado origem a muitos outros sentimentos, apresentar-se adulterado e já irreconhecível. Se identificarmos amor com inocência é sempre em estado imperfeito que dele tomamos conhecimento.
Normalmente as pessoas só reconhecem o amor pessoal quando encontram afinidades em alguém, com um ser igualmente imperfeito. Não podemos partir desse amor para definirmos o amor universal. Este não é, não pode ser, nem será jamais o somatório dos amores individuais. A possibilidade de cada um de nós partilhar um pouco desse amor universal é uma convicção essencial para nós. Mas que passa pela partilha, pela exposição à vida e não pelo fecho numa redoma de auto-suficiência e auto-convencimento.
A partilha exige pelo menos duas partes que tenham em comum sinceridade, respeito, lealdade, todos aqueles valores que são capazes de colocarem numa relação uma empatia que afaste o abuso, o equívoco, a chantagem emocional ou qualquer outra. O amor só existirá se não quisermos ser desconhecidos nem impormos uma imagem preferencial e se o desconhecido se não queira acobertar sob um das várias imagens que normalmente utiliza para se defender dos outros desconhecidos.
Por mais boa vontade implícita nas nossas declarações de sinceridade temos por hábito compor várias imagens para utilizar em situações específicas. Uma pode ter pormenores que estraguem outra. Cada uma pode comportar diferentes doses de indiferença ao amor ou de ódio. O amor só furará a muralha da indiferença e atenuará o ódio se soubermos a maneira como este se formou e se desenvolveu e se soubermos como se chegou a tanta insensibilidade.
Aquele que manifestam muito amor mais disso se convencem e mais convencidos ficam de que há imensa gente pronta a ouvi-los. No entanto de nada serve se as pessoas ouvirem mas não estiverem sintonizadas. Há formas de abordagem perfeitamente incompatíveis. Às diferentes experiências acresce o facto das relações de poder perturbarem toda a percepção.
Todas as relações sociais nos impõem, com maior ou menor agrado nosso, limitações que nos tornam frios e calculistas. Outrora à partida nós já estamos precavidos que as questões sociais eram colocadas num pé desnivelado e que isso tornava não iguais as emoções e sentimentos das diferentes partes envolvidas. Hoje, se no aspecto formal estamos ao mesmo nível dos outros, há uma muito maior incompatibilidade entre as pessoas. Não é fácil o caminho do amor.
Qualquer manifestação de amor só é eficaz se obtiver reconhecimento. Este sempre esteve ligado ao cumprimento de certas regras sociais. Na literatura o reconhecimento era obtido pela posição inversa de não cumprimento de um número determinado de regras, pela transgressão à norma. Não sendo já hoje necessariamente assim, estamos no entanto prisioneiros das nossas emoções e sentimentos que se podem revelar oportunos ou inoportunos e surpreender-nos.Hoje impõem-se-nos respostas rápidas e até contundentes às emoções e sentimentos que vimos transparecer nos outros. Não temos tempo para analisar os seus propósitos mais imediatos e os mais íntimos, destrinçar os seus aspectos pessoais e colectivos. O amor, que tanta falta faz à humanidade, pode ser utilizado como método e não ser um fim em si. Esta situação é criadora de imensos equívocos e enganos.

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

A nossa relação fácil com o poder – o cinismo

O cinismo social recorre a muitos princípios para se justificar e, claro, usa-os cinicamente. Há muitas pessoas que têm um comportamento normal em muitos aspectos da sua vida, mas agem cinicamente num ou em alguns. A pessoa experimentada prepara-se para não ser surpreendida, mas quase sempre o é porque é da natureza do cinismo ser tão bem disfarçado que é imprevisível.
O cinismo descobre-se muito no jogo, mas também em todos os aspectos da vida que as pessoas consideram como tal e em especial na política convertida assim num jogo de sorte e azar. O cinismo não é uma particularidade dos poderosos, mas sim daqueles que, à sua medida, se consideram como tal. Mas para todos os efeitos, pelo mediatismo que o comportamento dos políticos assume, será suficiente que nos debrucemos sobre o particular cinismo destes.
Para o político a primeira nota é negar que o cinismo exista em si e a segunda é negar igualmente que a sua actividade tenha alguma coisa a ver com um jogo. Mas a verdade é que por mais sublimes que sejam os seus princípios, por mais alheados que queiram ser do que se passa no dia a dia, os políticos não podem andar sempre só por aí e alguma vez mergulham nessa estranha vida de batalhas permanentes em que o seu carácter é posto em causa.
Para o cínico tudo é permitido desde que não ultrapasse o limite daquilo que se entende por razoável. Dir-se-á que afinal toda a gente assim pensa, mas não é verdade. Só o cínico consegue andar naqueles limites, não do que é legal, não do que é legítimo, mas sim daquilo que na sua opinião é razoável ser feito, seja qual for a natureza do acto que possamos ter em vista.
O cínico não convive bem com a arbitrariedade, necessita que haja uma legalidade para os mais fracos, uma legitimidade para os medíocres e uma razoabilidade para os fortes. O cínico está preparado para jogar com os mais fortes dos seus pares e para confiar no julgamento social. O cínico não é um marginal embora a fronteira entre o razoável e o marginal seja muitas vezes controversa.
O cínico acredita sempre ter armas mais poderosas do que os seus adversários e em saber usá-las nos momentos adequados. O cínico sabe que pode usar alguns truques, uns golpes baixos mesmo, muita simulação e uma imensa falta de vergonha. São armas que também não são estranhas aos seus pares. Já se os fracos e os medíocres se atrevem a medir forças com ele, o cínico nem puxa de todo o seu arsenal, aí dá um ar de superioridade e desdém
O cínico também sabe que os seus pares vão ganhando uma tolerância ao despropósito, à provocação, ao embuste. A antecipação e a surpresa são quase sempre as armas mais eficazes. O cínico sabe que entre vitória e derrota a margem é pequena e a diferença pode estar no momento de terminar o jogo. A arbitragem pode ser decisiva mas, caso não exista, terá que ser ele a ter artes para acabar o jogo abruptamente, levá-lo para um beco sem saída, reduzir o jogo a uma simples escolha entre o “Sim” e o “Não”.
O cínico atropela todas as regras, invoca o singular para provar o geral e invoca o geral para desculpabilizar o singular. Para o cínico cada vez é menor a distância entre a verdade, a meia verdade e a mentira. O cínico recorre á mentira se vê que os outros jogadores têm dificuldade em puxar de mais argumentos que defendam a verdade. O cínico insiste mesmo nas pias mentiras, tidas por verdades até certo momento, que agora já são mentiras provadas mas que ele acha poder reafirmar como “verdades” que não prejudicam alguém.
No confronto o cínico entende que se deve aplicar o princípio da proporcionalidade, ninguém deve reagir excedendo de modo grosseiro a força do ataque de que tenha sido alvo. Então quando ataca tenta suavizar os aspectos mais gravosos, mas de modo a que o ataque seja suficientemente provocatório para que a reacção seja entendida por excessiva e portanto reprovável. Já quando se defende tenta provar que o adversário ultrapassou os limites do razoável de maneira que o julgamento social o beneficie.
Para o cínico tudo se passa a nível de uma dialéctica verbal em que a semelhança com a realidade é pura coincidência. Para o cínico o mais importante é o julgamento social e portanto procura influenciar este, manipulando directamente os agentes da comunicação social, mas também jogando com as oportunidades, gerando silêncios e dramatizações, agrupando alianças tácticas e conjunturais, simulando a comunhão de sentimentos alheios.
O cínico movimenta-se bem na oralidade, dispensando a escrita sempre que pode. O cínico sabe que a sonoridade e a expressão são decisivas na comunicação e podem transmitir uma forma de atractividade ou repulsa que na escrita se não consegue fazer transparecer facilmente. Além disso a escrita tem a solidez que lhe não agrada, tem exigências de pormenor que na economia do seu tempo não tem lugar, tem mais probabilidades de chegar a lugares e a tempos incómodos para si.
O cínico distribui sorrisos por aliados e adversários, sem deixar de buscar um ambiente ameno para o confronto, é implacável neste, quando se não tem que confrontar ou simplesmente enfrentar alguém procura o maior distanciamento possível, podendo simular uma proximidade que dispensa. O cínico tem aversão ao tempo perdido e todo o contacto sem propósito definido não faz sentido para si.
Ao cínico interessa acima de tudo o efeito imediato, a sensação provocada no instante, mas também o acréscimo de aura que possa produzir. Do seu gosto pelo poder quando o detém resulta o seu desdém por ele quando ele não é seu. Na sua opinião só ele dá brilho ao poder, o torna suportável pelos outros. Quando o não detém considera-o intolerável. Ataca-o por todas as frentes, por estar demasiado presente e demasiado ausente, por ser brando e por ser excessivo, por ser demasiado formal e por ser inseguro.
O cínico tem uma relação fácil com o poder. Procura que este se desenvolva só o necessário para si, nesse sentido é um bom par. O problema é que quer que o poder seja amoldado à sua idiossincrasia. Todos nós gostaríamos de ter algum poder e influenciar o restante. É isso que nós admiramos e cobiçamos nos políticos porque adquirem algum poder, exercem-no a propósito e despropositadamente e influenciam outros legítima e desonestamente. O cínico dificulta a nossa relação com o poder para que tudo passe por ele.

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

A nossa difícil relação com o poder – o cepticismo

O cepticismo mais inicial, que já se demarca da confiança mas ainda se não consolidou, confunde-se com a suspeita, a desconfiança. O cepticismo saudável está para além da dúvida metódica e aquém da dúvida sistemática. O cepticismo mais acirrado deriva do sentimento de traição e fica a um passo da desconfiança absoluta. O cepticismo, sendo um sentimento que não resulta em entusiasmo mas em desilusão, se não descambar para a aversão, permite-nos a consideração da realidade mais a frio, a sua análise mais profunda.
O cepticismo em política manifesta-se em relação à capacidade e à vontade efectiva de pôr em prática uma dada política. Mas o que hoje está mais em voga é um cepticismo radical que põe em causa a possibilidade que alguma política venha um dia a corresponder àquilo que achamos ideal, razoável ou até simplesmente praticável. Este tipo de cepticismo também não se constitui normalmente para ser satisfeito porque, começando por exigir pouco, vai alargando as suas pretensões.
O cepticismo alimenta-se com a incoerência e a mentira, por mais ténues que sejam essas razões. O céptico por ausência de método aplica à realidade um carácter redutor que dificulta a descoberta das suas razões. Quando assume carácter doentio o cepticismo alimenta-se a si próprio numa obsessão permanente pelo precipício que separa sempre a realidade das suas exigências. Este cepticismo pode assumir um carácter retórico que disfarça muitas vezes uma oposição sistemática que pode transladar-se para o ódio.
O cepticismo pode converter-se num sentimento de revolta pouco solidário, que não resiste ao radicalismo verbal. O radicalismo não ajuda àqueles que manifestam o seu cepticismo depois de todos os esforços para serem razoáveis. O cepticismo até pode ser o resultante do cansaço, e levar a que se lhe não atribua qualquer esforço pessoal para o ultrapassar. Mas quem é escrupuloso, quer ter ideais, pode ser céptico mas não se pode deixar contaminar por doenças de carácter crónico.
O céptico radical tem uma aversão preconceituosa e sem fundamento e encontra sempre incoerências internas e mentiras no discurso alheio. O optimismo incomoda-o. Para ele quem lança nefastas ondas de optimismo nunca têm qualquer razão. Tenta promover e generalizar a ausência de confiança nas pessoas e no futuro. Se as pessoas são o que são, sem empenho em que o futuro seja diferente, com cépticos destes estamos tramados.
Muitas pessoas fazem do cepticismo uma estratégia de combate que visa aproximar a realidade do discurso. A ideia de que não devemos manifestar a nossa confiança em ninguém está por de mais generalizada. Tal deriva do facto de escassearem outros meios de intervenção. Os partidos são estruturas fechadas, a imprensa só reflecte a realidade pelo lado do espectáculo, os sindicatos são correias de transmissão, nos clubes faz-se tudo menos reflexão, na blogosfera vomita-se asco na sua asserção mais virulenta.
As pessoas agravam o seu cepticismo à medida que mais se isolam. Esse isolamento não se desvanece com os comentários anónimos na blogosfera. Esta forma de desabafo, que está longe de ser exclusiva dos cépticos, corresponde a uma diminuição da tensão, é uma descarga emocional, mas ela própria viciadora. Se o céptico tem no geral um comportamento mais passivo, quem adere a esta forma de intervenção pode passar a nutrir um sentimento mais activo de desforço de eventuais, hipotéticas derrotas. O céptico não pode ser o eterno derrotado.
Sem suficientes pessoas em quem confiemos, sem suficientes pessoas que possam expressar as nossas ideias, sem poder de intervenção a nível da sociedade e muitos menos a níveis razoáveis de poder, o cepticismo está demasiado perto. Caímos com uma facilidade imensa na procura dos defeitos alheios, não estando decerto alheios aos nossos, mas esquecendo-os, que também é isso que se pretende. Outra tentação dos mais cépticos é fixarem uma verdade de que não têm dúvidas.
A fixação numa verdade quando o mundo é tão deslizante é necessária para efeitos práticos, para servir de referências a propostas que se fazem, para ciclicamente aferirmos a sua pertinência e a necessidade de actualização. No jogo de forças que se estabelece com os outros o que tem uma fixação mais forte, se não tiver escrúpulos, vence por regra. A realidade, encarregando-se de desfazer as dúvidas, quantas vezes chega tarde de mais. Há erros que se acumulam sobre erros e pessoas certas que perdem sistematicamente.
Os cépticos com uma fixação forte, com tantas certezas são falsos cépticos, são cínicos. Numa conversa mole que se estabelece no meio social estas situações são comuns e desgastantes para quem quer dar alguma seriedade a qualquer discussão. O escrúpulo não cabe em certos meios.
Há muitas pessoas que nos desiludam, mas essas estão para além do cepticismo. Este, como fenómeno social deriva de uma incapacidade global, de uma descrença nas forças sociais existentes no momento. Não é uma incoerência individual, uma mentira em que alguém incorre, que altera a direcção, o vigor de um movimento colectivo. O cepticismo tem esse vigor, mas o militante extravasa em muito a sua importância e confunde o pessoal com o colectivo.
O céptico escrupuloso não é e sabe que não é o portador da verdade, mas tem que fazer algum esforço para não ser agarrado a esse anátema. Quantas vezes uma exagerada contundência numa conversa mole é utilizada para esse fim. De qualquer forma a linguagem desabrida tem sempre outras origens e outras razões e isso perturba e impede mesmo a nossa compreensão do cepticismo.Um dos casos em que o céptico tem razões para o ser é quanto às previsões. O céptico facilmente encontra aí indícios de optimismo exagerado, mas também de um pessimismo avassalador. E neste caso o céptico até o pode ser pelo lado positivo, pese embora, perante duas previsões, opte normalmente pela mais pessimista. Sem certezas, que essas ficam para os cínicos.