sexta-feira, 31 de julho de 2009

A hipoteca do futuro

Possivelmente um dia todos veremos o mundo da mesma maneira. Tal afirmação pode ser um absurdo, tanto como pode vir a ter algo de verdadeiro. Efectivamente ver o mundo da mesma maneira não é estarmos de acordo sobre tudo, percorrermos todos o mesmo percurso, procedermos de forma a copiar todos os outros. É apenas um compromisso pessoal leal.
Ver o mundo da mesma maneira nem é sequer termos todos igual responsabilidade porque temos diferentes funções, somos escolhidos ou assumimos essas funções na maioria dos casos sem a intervenção directa ou sequer indirecta da maioria dos outros. Mas é fazermos com que os nossos erros não comprometam os outros e não nos escondermos debaixo de qualquer guarda-chuva pessoal ou colectivo.
Temos que, desde logo, afastar dos nossos propósitos qualquer tentativa de obter comportamentos uniformes. A diversidade será maior numas sociedades do que noutras, mas o caminho não é regressar a uma hipotética unicidade que possa ter existido, antes chegar a uma situação em que a diversidade já nada tenha a ver com hipotéticas origens sociais.
A diversidade é já hoje aceite, incentivada, benéfica em todos os aspectos da vida, desde o social ao profissional e toda a vida prática. Diferente é a desigualdade, entendida no seu aspecto mais grave que é a diferença de base, de nascença até àquela que deriva da utilização de meios desonestos, mesmo que a aparente legalidade esconda uma evidente ilegitimidade.
Só teremos uma visão única do mundo quando não houver um litígio permanente entre a legalidade e a legitimidade. Interesses suspeitos ainda fazem que o legal muitas vezes não seja legítimo e por vezes o que seria legítimo ainda não é legal. É essencial a semelhança entre estas duas visões para resolvermos muitos dos conflitos que nos percorrem o nosso espírito. Ao agravar-se a diferença está em causa a razoabilidade e a condescendência no nosso relacionamento com os outros.
Chegaremos talvez ao ideal no dia em que ao olhar para o outro não necessitemos de saber quanto ele ganha, em que as nossas diferentes opções de vida se não devem às diferenças de rendimentos, em que cada um gerirá os seus proventos e não necessitará de tirar proveito de mim, nem eu olharei com concupiscência para o que houver no seu bolso.
O dinheiro, como elemento representativo, simboliza o princípio e o fim de toda a desigualdade, mas é essencial como elemento de troca. O problema é o seu entesouramento. Com dinheiro apostamos efectivamente e sem subterfúgios na competição com o objectivo de obter vantagens e não termos que apostar todos os dias na sobrevivência. Claro que mesmo sem dinheiro os animais conseguem formas de domínio.
Obviar a todas as formas de desigualdade congénitas é colocar a partilha onde há a exclusividade, a colaboração onde há competição. Não podemos acabar com o dinheiro, mas também não necessitamos de acabar com ele desde que fixemos regras precisas para o seu uso e entesouramento. Tal não passa por acabar com a bolsa ou por outras ideias retrógradas, mas por recentrar a riqueza sobre o trabalho.
A riqueza que assenta na posse de bens (titulados ou não), ou de dinheiro é temporária e mesmo ilusória. Os bens de utilidade imediata são riqueza efectiva mas são poucos, a maioria exige uma ou várias conversões para que se obtenha um bem de uso e isso implica a aplicação de trabalho numa ou em mais fases de transformação. Esse trabalho é que é a verdadeira mais valia. É irrelevante o valor atribuído aos bens naturais. Por outro lado os títulos representam no geral combinações de bens de características e com incorporação de trabalho diversos.
O preço dos bens originais anteriores ao trabalho é determinado pela guerra ou por outra qualquer forma de domínio e pode ser resolúvel por via pacífica como o prova a constituição da Comissão Europeia do Carvão e do Aço que, formada depois do fim da 2ª guerra mundial, veio resolver uma questão secular de conflito permanente. Resolvido este, concluímos que só o trabalho vem a dar valor à matéria bruta. O trabalho livre porque a escravatura é apropriação semelhante à dos bens naturais.
O dinheiro entesourado é uma hipoteca sobre o futuro. Sem futuro nada vale e o futuro, tendo de pagar tanto para sustentar o presente, derrapando sobre a ávida riqueza de hoje um juro tão usurário, mais tarde ou mais cedo impõe uma retirada de valor à hipoteca. O futuro é capaz de retirar credibilidade aos valores creditados sobre ele. Os títulos que representam esse futuro são facilmente desvalorizados.
Depreciam-se os bens que se esperava fossem os geradores da riqueza futura. Deprecia-se o próprio dinheiro se não tiver um Estado forte que o segure como referência. Quanto menos expectativas menos rentabilidade futura é esperada e mais sobrecarga se exerce sobre o trabalho de hoje. Este, não podendo corresponder, faz diminuir a renda significativamente.
Mas, sendo hoje o dinheiro o valor de referência, não se deprecia por ele mesmo, caindo a depreciação sobre os bens por serem geradores de menor valia. Se o trabalho envolvido no processo de transformação desses bens não aceita ser depreciado então é o capital que vê reduzidos os seus rendimentos. Se o dinheiro se depreciasse também o trabalho o seria.
Em cada momento não há distinção entre capital industrial e capital financeiro porque as transferências são fáceis. Foi a conversão do capital industrial em títulos que o tornou ainda mais vulnerável do que o capital financeiro. Este pode reduzir a sua rentabilidade mas tenderá a desequilibrar em seu favor qualquer partilha da hipoteca sobre o futuro. Todo o capital financeiro depende do trabalho futuro.

sexta-feira, 24 de julho de 2009

Os municípios multiusos

A função tradicionalmente desempenhada pelos municípios está profundamente aumentada e em alguns aspectos adulterada sem que a Lei diga expressamente se é legal ou não. O município, como organizador de alguns aspectos da vida colectiva, viu com a democracia e com a nova visão que esta trouxe ao municipalismo, muito aumentadas as suas competências e apropriou-se doutras. São os municípios multifunções, vulgo multiusos.
Também perdeu algumas prerrogativas principalmente por efeito da sua escala, no geral pequena. Um bom exemplo é o dos matadouros municipais extintos por força da criação de unidades de âmbito mais vasto, mais rentáveis, mais saudáveis, mais funcionais. Também nesse sentido se desloca a gestão da água e resíduos, a necessitar de muitos investimentos e de ganhos de escala
Os municípios também se têm visto livres de áreas tradicionais entregando a sua gestão a privados. São os serviços de limpeza, jardinagem, transportes, etc. de que muitos municípios abdicam por concessões temporárias e condicionadas. Outra via é a criação de empresas municipais com alguma autonomia de gestão. A dimensão dos municípios é determinante nas opções feitas, mas não há regras quanto à opção a fazer genericamente aceites.
Do lado dos ganhos temos uma cada vez maior capacidade de intervenção na gestão do território através de planos directores periodicamente revistos e alterados. Ultimamente os municípios passaram a ter uma intervenção acrescida na área do ensino, na reorganização e gestão escolar. E além disso têm recebido da administração central muitas competências a nível de quase todos os ministérios por via da sua descentralização.
Quanto às novas áreas de intervenção os municípios grandes são no geral mais tradicionalistas, talvez porque tenham um aperto orçamental mais elevado. Os municípios pequenos, que têm hoje um desafogo orçamental superior ao de algum dia, são os que mais se aventuram por novas áreas de intervenção e até de negócio. Muitos passaram a investir os seus excedentes orçamentais em equipamentos de cujo aluguer usufruem.
É o caso de Ponte de Lima que se destaca na criação e gestão de equipamentos da área da hotelaria. A Câmara já é o maior empresário desta área, alugando restaurantes, cafés, residências, parques de campismo, bicicletas. O que era impensável há anos, ou se entendia como actividade residual, é hoje uma das principais actividades deste órgão de gestão autárquica. No entanto a Câmara está a intervir num sector em que esta concorrência era dispensável.
Em simultâneo vemos desenvolver outras actividades já suficientemente difundidas por outras localidades como é a organização de festas, ora rebaptizadas de eventos de todo o género festivo. O município remete todos estes eventos para a área cultural, embora seja mais que contestável esta qualificação. O povo gosta, o problema é os artifícios que se fazem para contornar a Lei que não permitiria esses dispêndios tão avultados em estrelas de duvidosas qualidades, em espectáculos de pouca valia artística.
Efectivamente está na moda que os municípios criem associações ou sociedades de direito privado de que são o único accionista e para as quais transferem avultadas verbas cujo gasto se torna assim mais opaco, menos sujeito ao escrutínio político. Nessas associações tipo “Comissão das Feiras Novas” não há o mesmo rigor contabilístico, a mesma transparência que hoje se exige à afectação de dinheiros públicos.
O que está em causa é a alteração drásticas do municipalismo que, embora sempre possa ter subsidiado a realização de festas tradicionais, nunca foi o seu principal promotor e divulgador, muito menos criador de novos eventos. Hoje o município concorre com outras iniciativas da sociedade, realiza eventos em simultâneo com realizações tradicionais mais dispersas mas mais significativas para as pessoas das terras onde ocorrem e consegue subalternizá-las.
Há ainda o problema do tipo de eventos que se promovem ou patrocinam. Também os há de carácter mais saudável, mas muitos são nitidamente quase desprezíveis, atractivos para os indivíduos mais marginais, mais anti-sociais. Além de as iniciativas municipais não deverem competir com outras de índole privada, por mais rentáveis que elas possam ser, também não devem abranger temáticas desajustadas do ambiente local. Até a inovação tem limites.
As contas de todas as iniciativas municipais neste âmbito deveriam ser do conhecimento público para que se não pense que há iniciativas grátis, que há políticos beneméritos, porreiros e outros forretas, uns tristes. Até nesta área, mesmo que aceitemos integrá-la nas competências municipais, há melhores maneiras de gerir o dinheiro. As actividades lúdicas devem ser dinamizadas doutro modo, criando de preferência condições para que a iniciativa privada as promovam.
Dinamizar actividades puramente culturais seria mais louvável, mas decerto seria mais problemático ter qualidade e adesão apropriada. Mas o principal senão é que os agentes culturais não raro se deixam levar pelo vício da subsidiação. Nos nossos municípios há imensa gente pendurada como se tivesse mérito cultural para lá estar. Simplesmente o seu trabalho é invisível, muitas vezes não se lhes vê o cheiro. Ainda falta saber o que é cultura para muita gente.
Os problemas dos vários municípios são hoje muito iguais e também são idênticas as ambições de cada um. Além desta dedicação ao entretenimento todos quererem um “multiusos” para si, mesmo que haja um deficientemente utilizado a escassos quilómetros Não existe planeamento, discussão sobre a melhor localização dos equipamentos, forma de evitar desperdícios.
Muitos atribuem esta duplicação de equipamentos à falta de regionalização, mas tal não serve de desculpa. Há elefantes brancos que o bom senso recomendaria se não fizessem. Os custos do seu não funcionamento vêem a penalizar futuras administrações. A solução para quem os têm é mesmo tudo fazer para lhes dar uso e utilizá-los para o desporto e a cultura e, porque não mas só depois, para actividades lúdicas, que os sectores privado e associativo os podem aproveitar.

sexta-feira, 17 de julho de 2009

A nível da palavra tudo será permitido?

A democracia tem variantes, e estas por sua vez têm diferentes méritos. A mais meritória democracia é a política, porque só esta pode ser o sustentáculo de todas as outras. Porém a democracia política tem um senão: É organicista na forma. Nunca se conseguiu uma democracia directa. No organicismo ganha-se eficácia mas perde-se genuinidade. O órgão adquire uma lógica própria que suplanta a pessoal.
A maioria de nós fez uma clara opção pela intervenção dentro dos condicionalismos que a democracia nos impõe. Para essa democracia concorrem os partidos políticos, associações de estrutura diversa. A sua constituição e funcionamento mesmo em democracia não têm que ser livres. Escasseiam as regras para o seu funcionamento, estão mal definidas as suas formas de intervenção. No fundo a sua imprescindibilidade mais faz realçar os seus defeitos. Isto torna-os sujeitos à crítica permanente da população.
Os partidos funcionam a várias escalas, com diferentes formas de representação e problemas específicos aos seus distintos níveis. Às escalas mais elevadas os partidos assumem um carácter exclusivo. Assim a maioria da população é excluída da participação política a esses níveis e vê-a dificultada a níveis mais baixos. Aqueles que acham que deveriam poder dar uma colaboração de valor acrescido à vida pública do País, sem necessitar de para isso estarem enquadrados em partidos, sentem-se frustrados.
Além de todos os outros defeitos os partidos só recorrem aos chamados independentes em última instância. Os poucos que conseguem furar todas as barreiras à entrada são mal vistos, marginalizados, o seu trabalho chega a ser sabotado, minimizado, ridicularizado mesmo. Aos políticos profissionais nada é exigido, aos independentes têm que ser os melhores. A sua participação cívica depende da maior ou menor mesquinhez dos aparelhos partidários.
A maioria dos independentes desconhece muitas das regras dos partidos, têm uma sensibilidade “imatura” para responder ao cinismo prevalecente nos meios políticos. Quem não prescindir de ser genuíno, de ter uma satisfação própria naquilo que faz, não tem lugar. Os poucos aceites acabam por soçobrar à mão daqueles que parasitam os aparelhos partidários. Os partidos estão cheios de “sargentos” à espera da sua vez de se promoverem a “oficiais”. E estes, os que têm “estatuto” são arrogantes e mesquinhos.
A política, como trituradora da personalidade individual, ataca menos os profissionais, mais preparados para o efeito. E estes atacam os não filiados por terem excessiva independência. Abrigam-se no facto de eles mesmos serem obrigados a aceitar opiniões diferentes das suas, a defenderem perante outros aquilo que muitas vezes é contrário à sua sensibilidade. Os independentes são uns privilegiados neste aspecto. Só que normalmente já provaram noutros fóruns a sabedoria que os profissionais nunca são obrigados a provar.
Os independentes não estão obrigados a tantas cedências, não se deixam arrastar pela militância tantas vezes acéfala e seguidista, nem se deixam ficar pela apatia de muitos dos que um dia se filiaram num partido com objectivos menos sérios. Claro que também há falsos independentes, há aqueles que querem apanhar a boleia e querem ficar de vez com um lugar na carruagem. Quem se quer manter independente cultiva-se, desenvolve ideias, métodos próprios, porque os partidos ainda não descobriram nada de infalível.
Há uma clara diferença entre quem procura ter uma satisfação pessoal naquilo que faz politicamente e quem tudo faz por obrigação, a contragosto às vezes. O verdadeiro independente não prescinde da sua sensibilidade, não deixa que se esmaguem os seus sentimentos pessoais. Nunca esquece o que era matricial em si. O independente empenha-se se se sente enquadrado, sentimental e intelectualmente, num plano estratégico mesmo que definido por outrem.
Parece pois existir, e as pessoas concluem-no, haver perversão na política. O mundo em que os políticos mergulham é artificial, tem regras próprias embora retiradas de velhos princípios comummente aceites. Mas princípios criados noutros contextos não conseguem integrar facilmente o actual. Honra, dignidade, frontalidade, seriedade e outros perderam o significado quando transferidos para um mundo diferente daquele em que tais termos ganharam significado.
Há valores que eram próprios de um mundo de hierarquias rígidas e, por anulação das regras próprias, o seu significado perdeu-se. Ainda se não encontraram regras eficazes que se apliquem à vida de hoje. De alguma forma falta uma autoridade exterior à política, alguém capaz de dirimir conflitos entre os vários agentes políticos, de impor alguma lisura e clareza à luta política. É tanta a confusão que em cada momento até falta saber o que está em causa, seja a curto ou longo prazo, seja ao mais pequeno nível, seja ao mais vasto.
Os políticos movimentam-se hoje em quadros mentais para os quais a sua contribuição é muitas vezes mínima. Não os tendo elaborado, não sendo seus proprietários, seus gestores, quando muito são seus defensores, mas chegam facilmente a ser seus escravos, prisioneiros da sua lógica própria. Muitos políticos atiram-se a discutir assuntos para os quais não estão preparados e não estão convictos daquilo que defendem. Por vezes só deles têm uma noção vaga.
Embora não haja liberdade absoluta e haja valores sociais a respeitar, podemos manter a nossa liberdade enquanto conseguirmos manter a alma, estivermos convencidos da bondade do que fazemos, seguirmos um caminho solidário escolhido com entusiasmo e vivido com satisfação pessoal. Só a espontaneidade, a naturalidade são demonstrativas da nossa liberdade. O falso verniz dos políticos é a capa que esconde caracteres de duvidosa índole.
Qualquer submissão absoluta à lógica da luta política é contraproducente. Também o é suplantar a ignorância por meios artificiosos. Dada a necessidade de existirem políticos profissionais só resta pedir-lhes que não tornem artificial a sua sensibilidade e recorram a quem sabe sempre que não estejam seguros. Este mundo em que se não toleram uns cornos e se suportam todos os insultos tem algo de podre. Hoje os políticos procuram munir-se de instrumentos intelectuais perfeitamente perversos. A nível da palavra parece ser tudo permitido.

sexta-feira, 10 de julho de 2009

Campanhas eleitorais e cultura política

O que torna as campanhas eleitorais quase pacíficas é o facto de que as tensões se vão descarregando durante o período de uma legislatura e chegados ao fim já pouco mais há a dizer, está praticamente tudo dito. Isto tem as suas vantagens de que se realça este aspecto mas tem evidentes desvantagens principalmente em criar um estado de campanha eleitoral permanente.
Outra desvantagem nítida é que, entrados no período propriamente dito de campanha eleitoral, muitas das questões que poderiam ser abordadas, por o terem já sido exaustivamente durante o período anterior, ficam esquecidas, não são facilmente reavivadas. Não haveria mal maior se a discussão feita a quente não fosse muitas vezes enviesado e levasse assim a conclusões erróneas, conclusões cuja veracidade os factos consequentes se encarregam de desmentir.
Efectivamente não há praticamente medida que não tenha contestação imediata, mas os resultados de muitas só se vêem a prazo e, mesmo que se vejam até à campanha eleitoral subsequente, vai faltar a reanálise, a reavaliação que eventualmente poderiam diferir das conclusões tiradas à altura. Passa por mais importante o debate teórico, feito na ocasião do lançamento de uma medida, que o debate que se poderia fazer estando já na posse de dados da sua aplicação.
Dir-se-á que vai depender da força que as forças políticas interessadas conseguirem imprimir aos assuntos que mais lhe são favoráveis de modo a inclui-los na agenda política. Força que a razão decerto reforçará mas que se terá que dispersar contra muitos temas, muitos adversários, no meio de muita controvérsia inútil criada pela manha e engenho dos mesmos. As condições para o debate nunca mais serão as mesmas.
Outra desvantagem da campanha permanente é o desgaste que provoca na capacidade de acção e de inovação. Não só pode ter efeito negativo na acção em concreto, quando esta poderia vir a ser benéfica, como tal efeito se pode repercutir noutras acções e iniciativas a tomar. A oposição agarra-se à ideia de que é melhor ganhar agora que esperar ganhar a prazo e que é necessário perturbar a eficácia alheia. A situação tenta junto da população que tenha validade a máxima “deixem-nos trabalhar” e deixem a avaliação para depois.
Na verdade são as medidas mais radicais, que implicam mudanças irreversíveis, que são mais difíceis de implementar, que sofrem mais contestação, que têm resultados a mais longo prazo. A fragilidade do sistema democrático permite que haja armas de que a oposição, mesmo em minoria, se pode munir para embaraçar, atrasar, ir diferindo essas medidas para que nunca se consiga a sua plena execução. E muitas vezes pior que nada fazer é implementar uma medida só parcialmente.
Isto torna difícil, senão impossível, fazer do Estado um edifício coerente, há retalhos de medidas que ficam aplicados aqui e acolá e outros que nunca se chegam a aplicar, há sectores evoluídos e outros que não conseguem sair de uma organização artesanal. Também isto tem um efeito directo na criação de injustiças relativas, de desequilíbrios internos e externos às organizações, de desigualdades funcionais, nos meios, nos rendimentos, no pleno dos factores sociais.
Como fortalecer a democracia, impedir bloqueios extemporâneos, conseguir cumprir até ao fim e mantendo a mesma força mandatos expressivos? Suspender durante um tempo a democracia, seja por via da ditadura do proletariado ou duma ultraliberal, não é solução. Acreditar que as coisas acabarão bem após este jogo de forças que de algum modo vai permitindo avançar parece ser o mais lógico.
Mas para quem não vê lógica na crença vejamos: A maioria dos avanços, feitos em particular nos últimos cinquenta anos, não se deve à política mas a outros factores de natureza social e muitos deles desenvolveram-se mesmo contra a política. Resistências ao desenvolvimento sempre se manifestaram e principalmente quando este tem repercussões nas estruturas sociais.
Em primeiro lugar temos a ciência no seu ramo físico, a ciência dita experimental e a sua ramificação utilitária que é a tecnologia. Será despiciendo destacar alguns dos seus ramos ou realizações, mas, quanto aos seus efeitos derivados da conjugação de muitos factores, pode-se realçar aqueles que se referem à alimentação, à saúde e à comunicação.
Temos depois a ciência computacional cujas realizações já hoje abarcam quase todos os domínios da actividade humana. Sobressai ainda a ciência das organizações que se foram tornando autónomas da ciência do poder. Por fim, mas não menos importantes, temos todas as outras ciências humanas, cuja evolução tem sido mais lenta, mas cujos efeitos se tem feito sentir em toda a vida quotidiana das pessoas.
Também a ciência política tem sofrido avanços mas também aqui há resistência da parte das velhas estruturas e protagonistas. A incomodidade é grande ao faltar saber para lidar com novas realidades. A política vê-se agora sob pressão não já para criar ou dar origem a fenómenos novos, mas para acompanhar e enquadrar a evolução desencadeada a partir doutros centros de poder.
A introdução de novas tecnologias, de novos procedimentos computacionais e organizacionais, de novos comportamentos pessoais e colectivos faz-se em muitos casos sem pedir o “agreement” dos políticos e de muitos sectores sociais que se lhe oporiam se tal lhes fosse possível. Fazem-se muitas vezes sem Leis que enquadrem esses novos fenómenos, colocando os políticos numa corrida louca para irem atrás, suficientemente perto para não perderem o controlo total.
Estamos numa sociedade em que existe uma ânsia medonha de que haja Leis sobre tudo. Mesmo que em muitas situações se pudessem aplicar Leis já existentes pela verosimilhança com outras, exige-se a descrição pormenorizada de todo o contexto invocável, a referência explícita a cada um dos seus elementos particulares. Só isto já coloca o governo sob pressão máxima e a oposição ajuda e até se ri enquanto está nessa posição. A população incrédula exaspera.Isto é também um dos factores que leva a oposição, a imprensa e o público em geral a criar uma espécie de tribunal permanente, um julgamento em que os argumentos esvoaçam ao sabor do vento dominante no momento. Colocar o governo a trabalhar mais e melhor, dar à oposição menos poderes de interferência, não será só por si qualquer remédio para a questão. Só uma maior cultura política da generalidade das pessoas permitirá melhorar este ambiente por vezes infernal.

sexta-feira, 3 de julho de 2009

Os pobres, o espinho na auréola dos políticos

Há duas opiniões que correm céleres e quase a par de modo que até há pessoas que agarram nelas indistintamente e as arremessam ao primeiro que lhes aparece a querer dar algum crédito à vida pública. Uma é velha, não tão velha como possa parecer, mas tão velha que em Portugal já tem uso desde o século dezanove. Outra é mais recente, até porque só é possível depois de um período de mais abundância, mas em que a instabilidade faz temer pela perca de alguma.
A primeira opinião é de que se estraga imenso dinheiro com políticos, com gente inútil, que anda aí a gastar à grande e faz disso uma ostentação insuportável. A segunda opinião é de que se estraga imenso dinheiro com os pobres, com gente igualmente inútil, que não quer trabalhar, que está viciada em viver à custa do trabalho alheio, a quem são dados subsídios para tudo, até para “iguarias” a que outrora nem os ricos chegavam e que ainda assim exige cada vez mais.
Claro que também há quem diga que o dinheiro que se podia tirar aos políticos podia ser usado a favor dos pobres, mas não é a esta que me refiro. Também seria fácil mostrar que este desvelo pelos pobres é cada vez mais passageiro e calculista, quando o que se pretende é atacar o Estado. Aquelas duas opiniões servem de base à aversão que cada vez mais se espalha em relação aos políticos e à política e são utilizadas para mostrar que o Estado, sendo imensamente rico, é mau repartidor, é açambarcador e esbanjador de recursos.
Essas pessoas jogam com a relação directa daquelas duas opiniões, ora pondo-as em paralelo, ora fazendo depender uma da outra. De qualquer modo há uma influência mútua, cada uma delas reforça e é reforçada pela outra. Pobres e políticos atraem-se e repelem-se numa relação sempre difícil. As pessoas encontraram nestas duas opiniões os chavões a aplicar na maioria das situações de mal desempenho do Estado. Traduzem a sua condenação de um certo despesismo em que existe um toque de imoralidade, de injustiça, não em relação aos pobres, mas aos que trabalham, aos que estão na actividade produtiva.
É a sensibilidade de cada interlocutor que muitas vezes vai determinar a opinião que se transmite. As pessoas arremessam a opinião mais adequada a quem já não encontra motivo para ter “pena dos pobres” ou que sente vontade de “descascar directamente nos políticos”. Aos pobres diz-se que toda a culpa é dos políticos, do seu exagerado número, do seu excessivo rendimento. Aos ricos diz-se que a fonte de todos os males está na falta de exigência, na flacidez da disciplina, na promoção da preguiça, na exaltação do desleixo.
Já em relação aos remediados, tipo classe média, avalia-se primeiro a sua sensibilidade. Se são sensíveis à pobreza coloca-se o político na lama, caso contrário coloca-se os pobres na origem de todos os males. Se já perdeu toda a sensibilidade escolhe-se a perspectiva mais adequada ao desenrolar da própria conversa. Há sempre uma ocasião em que é fácil introduzir a crítica do dinheiro mal gasto ou do excesso de gastos nas funções políticas e nas funções sociais
Colocar um rótulo nestas ideias, apelidá-las de extremistas, dizer que são obra de pessoas ressabiadas, invejosas, é redutor e não leva a lado algum. Não com este cariz absolutista mas aplicadas a casos pontuais, ou suavizadas na sua expressão, estas ideias são utilizadas por todas as forças políticas no dia a dia da sua luta. Não as negando na prática, há que lhes encontrar o motivo, debelar as suas causas, corrigir as condições em que elas germinam, anular o seu efeito desagregador da sociedade.
A verdade é que se ouve muito político sem vergonha dizer que já deu muito ao seu partido com pouca paga, o tacho não terá estado à altura. Na sociedade pode haver funções exercidas por políticos mas são muito poucas aquelas que têm que o ser necessariamente. Muito menos pode haver duplicação de funções como se propuseram os regimes assentes em ideologias totalitárias que subdividiam as funções numa de carácter técnico e noutra de carácter político.
Felizmente que estará em desuso o pagamento a um político para dar ordens a um técnico que as vai executar. Subsistem porém um grande número de políticos em cargos desnecessários, excedentários, que ocupam hierarquias imensas com cargos sobrepostos. É naturalmente a estes desperdícios que as pessoas se referem quando criticam o dispêndio de dinheiro pelo Estado para sustentar a sua máquina e a dos diferentes partidos que nela se vão pendurando.
Com as comunicações existentes, com a literacia a um melhor nível, diminuiu a necessidade de intermediação na política pelo que um número limitado de profissionais pode gerar as bases programáticas em que se basearão as normas que alguns outros porão em execução. O povo identificaria assim melhor os responsáveis e todos os que ocupam cargos na estrutura do Estado responderiam hierarquicamente, estando aqueles políticos eleitos na cúpula.
Mas se os políticos já não têm vergonha, os “pobres” também a vão perdendo e tornam-se assim alvo fácil de crítica. O Estado gasta cada vez mais nas funções sociais, no combate à pobreza e no apoio aos mais carenciados e o efeito parece ser cada vez menor. Há quem veja aí o lado cínico da política porque entende que muitos políticos só reforçam esta função do Estado para que os mais desfavorecidos se aquietem um pouco.
Há quem pense que um sistema altamente concorrencial, quanto mais liberal ele for, mais se justifica que aqueles que tem menos oportunidades sejam apoiados pelo Estado. Outros ainda pensarão na inevitabilidade de surgirem novas partilhas do trabalho, novas tecnologias e nova organizações para responder á eficácia, à rentabilidade, enfim, à concorrência de todo o lado. E pensarão também que em todo o lado, quanto maior for a exigência para integrar sistemas de trabalho eficazes, mais pessoas sobrarão para desempenhar funções subalternas, cada vez mais mal pagas, cada vez mais carentes de apoio social.
A especialização, a pouca tolerância a ritmos de trabalho exigentes, leva a que cada vez mais franjas marginais se formem e que é necessário apoiar de alguma forma. É pois de prever que a divisão dos rendimentos venha a prevalecer cada vez mais sobre a divisão do trabalho como preocupação das pessoas e que infelizmente haja cada vez mais a pensar que é dinheiro perdido aquele que se destina a garantir o mínimo de dignidade a quem não tem outra forma de a conseguir. Mas também todos sabemos que a justiça social se obtém doutro modo.