sexta-feira, 29 de maio de 2009

A nossa difícil relação com o poder - a subserviência

Genericamente é difícil a nossa relação com o poder, até porque este apresenta sempre uma face diferente conforme quem o exerce e a quem ele é dirigido. Não há poderes abstractos, só quando estamos perante um deles, exercido por uma pessoa específica ou por um órgão colegial, podemos avaliar a sua natureza e a sua forma de se manifestar.
No entanto nós geralmente já temos ideias feitas, sentimentos arreigados, o que torna difícil a mudança de opinião, a simples discussão livre destes assuntos, já que não a há sem pormos a hipótese de acrescentarmos um novo ponto de vista ao nosso conhecimento, de alterarmos alguma conclusão, por pouco que seja, de modificarmos, pelo menos em certa medida, a opinião que tínhamos sobre quem exerce o poder e até sobre quem é condicionado por ele.
A nossa difícil relação com o poder deriva também de ser complicado, senão impossível, racionalizar essa relação, transformá-la em ideias precisas, claras, que nós mesmos entendamos, mas que a mediana das pessoas entenda também. Na minha opinião ninguém se pode ter por intelectual, por pessoa culta se não ambicionar ter um discurso escorreito sobre o poder, de preferência sobre os vários poderes. Um discurso que não esteja sujeito a qualquer hermenêutica. Raramente aquelas nossas ideias feitas correspondem a este padrão.
A simples manifestação dos nossos sentimentos que descrevem a relação que temos com os poderes é quase sempre perfeitamente redutora. Os sentimentos correspondem ao estado de paralisia do nosso espírito. São uma imagem instantânea muito mais disponível que um conjunto de argumentos. Mas são uma imagem vulnerável, manipulável pelos outros que mais se preocupam a atacá-los directamente, usando outras imagens seleccionadas, do que a desmonta-los pelo esclarecimento dos motivos da sua criação.
Os sentimentos são-nos necessários porque nos facultam na hora instrumentos de análise que nos permitem ter uma resposta rápida e fundamentada. Porém os sentimentos podem tornar-nos seus prisioneiros. Fazem-nos descansar sobre o trabalho de análise realizado aquando da sua elaboração e não tem em conta as enormes mudanças entretanto ocorridas. Os nossos sentimentos têm pois um certo grau de incerteza.
Podemos, para obviar a este problema, fazer uma certa actualização permanente dos nossos sentimentos. Como porém um dos seus objectivos é dar-nos uma certa estabilidade emocional e intelectual temos que os fazer durar o maior tempo possível. Neste sentido a sociedade, se não nos exigisse tanto, ajudava-nos a mudar lentamente os nossos sentimentos. Simplesmente não quer e as horas que temos de dedicar a outras tarefas raramente nos deixam tempo para pensar. Também neste domínio a comunicação social nos fornece mais enlatados do que comida saudável. Mas afinal de que sentimentos e poderes falamos?
O poder familiar, maternal e paternal, é o primeiro com que nos defrontamos, e porque desde logo elaboramos sentimentos, estes vão-nos condicionar na nossa futura vida de relação, seja com os nossos contemporâneos seja com o poder social e político. As dificuldades do relacionamento familiar são difíceis de conhecer e, além das nossas, embrenhamo-nos imenso na especulação. Há quem queira reduzir tudo a uma questão económica, mas o melhor será considerar a família como o reflexo de todas as contradições existentes numa sociedade.
Podemos facilmente confirmar que em Portugal a nossa relação com o poder é mais problemática ainda devido ao nosso percurso feito de longas paralisias e bruscos avanços. Enquanto há normalmente um maior afastamento das pessoas em relação ao poder, há também ocasiões em que há uma proximidade inquietante na medida em que se não traduz em qualquer relação consistente. Uma certa imaturidade emocional leva-nos a imaginarmos uma relação demasiado estreita mas a não sabermos colocar exigências que lhe dêem substância.
A dificuldade do nosso relacionamento com o poder tanto pode derivar do facto de não nos opormos suficientemente à sua expansão, como pode derivar de fazermos uma oposição sistemática, visando o seu próprio bloqueamento. O poder precisa de encontrar alguma resistência para não amolecer, mas também de algum estímulo para encontrar o seu melhor caminho. A nossa passividade não é benéfica, mas a nossa irreverência nem sempre ajuda.
A atitude mais fácil perante o poder é a subserviência, a qual em Portugal parece ser endémica. A subserviência surge quando imaginamos um poder mais forte do que aquele que se nos apresenta e assumimos uma atitude mais submissa do que aquela que nos seria exigível. Esta subserviência propaga-se mais quando existem poderes sólidos mas não particularmente despóticos, que não são agressivos, que não se afirmam pela persistência, pela crueldade ou pela insídia.
Perto da subserviência surge o deslumbramento quando pensamos que o poder é iluminado. Da subserviência ainda saímos com uma certa facilidade mas o deslumbramento não nos permite uma saída fácil. Aliás a subserviência pode-se diluir lentamente mas também pode dar origem a erupções de contestação violenta ao poder precisamente porque quem é subserviente não está preparado para uma relação pacífica imediata com esse poder.
Lado a lado com a subserviência caminha muitas vezes a resignação, de modo que são sentimentos que convém não confundir. A resignação pode produzir o mesmo efeito, mas é própria de quem tem mais consciência da realidade, está mais próximo dela. É um sentimento mais elaborado, mais próximo da racionalidade e como tal mais facilmente desmontável se, aos nossos olhos, se justificar que dele nos libertemos. O resignado está mais preparado para vir a estabelecer uma relação aberta e pacífica com o poder.

sexta-feira, 22 de maio de 2009

Ainda há quem queira a luta de classes?

Na sociedade sempre haverá divisão do trabalho, mesmo que se reparta a riqueza. Aliás esta não tem qualquer valor se não houver trabalho, embora permita fazer alguma espécie de greve a este. Deixemos o resultado final à especulação de quem não tenha mais nada para fazer ou de quem se ocupe de imaginar robôs para tudo. Aceitemos entretanto a inevitabilidade das classes sociais como manifestação da divisão do trabalho e da riqueza.
No entanto as classes não são estáveis e nunca mais serão as mesmas, o que traz problemas às ideologias que patrocinam a sua luta. Tal deve-se às alterações constantes na economia. Perante isto as forças políticas classistas são arrastadas e têm que se adaptar à realidade de momento. A adaptação vai hoje no sentido de continuar a integrar nas classes a libertar alguns sectores que já por lá passaram e são hoje favorecidos.
Porém a situação contraditória hoje existente obriga as forças políticas classistas a receber no seu seio novas bases entretanto proletarizadas, tornadas dependentes e subalternas. De qualquer modo as diferenças são hoje difíceis de estabelecer, o que põe em causa a validade do próprio conceito de luta de classes e dificulta o estabelecimento de uma estratégia consistente.
Outrora a posse de alguma terra, de um engenho, de um posto de comércio fazia toda a diferença. Mesmo ser proprietário, co-proprietário ou cooperante fazia uma diferença enorme. Hoje a diferença não passa por aí. Os rendimentos podem vir de origens muito diversas, entrecruzam-se, as diferenças de remuneração do trabalho são enormes, os centros de poder económico difusos.
As ideologias classistas não têm hoje um padrão que lhes sirva de guia. As forças que hoje são herdeiras dessas ideologias passaram a estar em todas as lutas, sempre que haja contestação ao poder instituído pelas forças que elas querem combater. Apoiam todas as classes que tenham poder reivindicativo mesmo correndo o risco de silenciar aqueles que são verdadeiramente humilhados. Neste sentido contribuem para aumentar as diferenças sociais.
A velha aliança do campesinato com o proletariado industrial está esquecida, maugrado continuar a existir campesinato, embora em muito menos número, e proletariado, em Portugal em número nunca antes alcançado. Muitas unidades fabris mudaram de natureza, mas não deixaram de existir têxteis, calçado e muitas outras indústrias que se mantêm dentro dos antigos padrões.
É a gente destas velhas profissões que hoje mais vai para o desemprego e no entanto as lutas dos partidos ideologicamente classistas parece não passarem por aqui. Antes as patrocinam quando protagonizadas por uma mítica classe média em constante ascensão política impulsionada por todas as forças contestatárias dos mais diversas matizes.
Hoje as forças políticas classistas concentram-se para obter base de apoio na classe média, ou melhor, nas classes médias, e não se preocupam com os seus contornos. Passam ao lado do quanto é problemático colocar num mesmo nível, confluir nos mesmos objectivos os velhos proletários, os novos intelectuais, os profissionais liberais e empresários ricos e podres e altos funcionários. Não seria melhor definir as classes numa nova base?
Não haverá dúvidas que temos que considerar como pertencendo à classe média todos aqueles que são capazes de passar por ano um longo período de férias no estrangeiro ou dois períodos mais curtos, que têm pelo menos um carro para cada elemento do agregado familiar, que têm mota, barco ou qualquer outro meio de evasão, que come pelo menos duas vezes por semana no restaurante, que têm uma carteira cheia de cartões de crédito, que navega pelo menos uma hora por dia na Internet e vomita para lá dez comentários verrinosos, que culturalmente navega entre o indigente irradiante e o erudito deslumbrado.
Politicamente esta classe média é indefinida. Pertence a todas as forças políticas, é capaz de ser tudo mas preferencialmente não é nada. É contra tudo que sejam regras rígidas e a favor de tudo que sejam castigos exemplares, é contra as responsabilidades que lhe não dêem dinheiro e a favor das solidariedades que dêem espectáculo televisivo, é contra os compromissos bilaterais que a envolvam e a favor de políticas exigentes mas difusas.
As forças políticas classistas ao patrocinar esta classe média como o centro da sua actividade política ou são cínicas ou, se verdadeiras, são ridículas. Isto é, ou consideram esta classe média como um aliado de ocasião, descartável um dia, ou consideram que a contestação vale por si mesma. Como a primeira hipótese já foi vivida e teve resultados dramáticos, restará a segunda sem fim à vista.
Certos grupos sociais, mesmo beneficiando já das regalias desta classe média, têm-se deixado contaminar pela contestação sistemática, sem curar de saber se não estarão a exorbitar e a colocar de outra forma em risco o seu próprio posicionamento social. E não é garantido que as forças políticas que os incentivam, os apoiam, os controlam, mantenham sempre a mesma posição, quando o poder mudar, a critica social se direccionar noutro sentido, a política de alianças preferenciais o impuser.
Seria vantajoso que as forças políticas fossem menos imediatistas e quando se dizem a favor da eliminação das classes sociais procedessem em conformidade, não lutassem por regalias para uns que se sabe não são passíveis de generalização nem a prazo e muito menos de imediato. A isto chama-se demagogia, ao facto de que as forças politicas classistas entre a pureza ideológica e a eficácia eleitoral optarem por esta.
Porém não será realista esperar que os partidos deixem de defender as classes que lhes estão na origem. As classes poderosas têm os seus partidos e procuram influenciar os outros. Às classes médias não lhes faltam representantes. Os proletários do sistema, que já não são os mesmos de há meio século, são os que têm mais dificuldade em encontrar representante, até porque não têm dinheiro para pagar a sua alforria. Quem se propõe defender estes sem vir com a ultrapassada luta de classe e os estafados partidos classistas?

sexta-feira, 15 de maio de 2009

O nosso lugar na Europa não pode ficar vazio

Discutir a Europa em termos de custos/benefícios parece ser dispensável. Os benefícios são para a generalidade da população tão evidentes que não têm contestação válida. Haverá sempre alguém que se sente prejudicado mas vá lá de saber, se não tivéssemos aderido à Comunidade Europeia, se não se sentiria insatisfeito na mesma, embora tivesse que atribuir a culpa a outra razão qualquer.
Discutir a Europa é necessariamente discutir se há razões suficientes para a existência de mais um nível de soberania do que aquele a que estávamos habituados, se é correcta a natureza dos poderes que lhe são atribuídos e se, nos casos em que é correcta, a transferência de poderes para este nível deverá ser maior ou menor do que o que hoje ocorre.
Discutir a Europa é discutir a compatibilidade entre dois poderes que podem ter orientações diferentes e que, mesmo no caso de serem da mesma cor política, podem ter divergências profundas. É legítimo colocar a nossa administração a executar medidas a contra gosto, por não concordar com elas?
Discutir a Europa é partir da convicção de que nela temos um lugar insubstituível. Partindo do princípio de que a maioria de nós não quer discutir a Europa em termos que possam pôr em causa a existência da sua Comunidade, que possam levar a conclusões divisionistas, então o que nos cabe decidir e portanto discutir previamente?
Aceitando a Europa como realidade política incontornável podemos e devemos discutir a política europeia como forma de contribuir para a realização através dela dos objectivos que atribuímos à política nacional. Na realidade há muita coisa que, sendo executada pelos órgãos nacionais, é determinada pelos órgãos comunitários, pelo que devemos discutir essas questões aos dois níveis.
A política europeia não pode ser discutida em alternativa, em substituição da política nacional mas sim como seu complemento e em muitos casos como factor decisivo para os êxitos e inêxitos da política nacional. É legítima a nossa perspectiva de discutir a orientação do poder que agora reside nessa nova sede em termos da sua melhor ou pior convergência com a nossa política, na perspectiva do interesse nacional.
É profundamente errada a atitude de muitos de nós, de altos responsáveis e de simples eleitores que entendem que só porque somos beneficiários líquidos da Comunidade, nós deveríamos estar caladas e compatibilizar a nossa política com a europeia para sermos bons alunos, bem comportados e termos assim direito a umas migalhas. Demitir-nos dessa forma da nossa cidadania europeia é o nosso pior contributo para a Europa.
A Europa exige de nós a nossa participação plena. Os nossos interesses são da mesma natureza dos outros cidadãos europeus, classifiquemo-los como nos aprouver. O que não podemos exigir é a transferência directa, unidireccional daquilo que os outros Países terão a mais sem que nos não esforcemos por ser cada vez menos dependentes da Comunidade nesse sentido.
Não podemos acreditar na bondade da Europa sem que ela tenha a nossa contribuição. Não chega dizer que não concordamos. Para além de termos que aceitar decisões que nos não agradam, temos que contribuir previamente para elas através ao menos das eleições. Não chega dizermos que a Comunidade Europeia nos impõe demasiados limites, muitas restrições, alguns impedimentos para o nosso gosto. Quando são prejudiciais teremos de mostrar que também o serão para os outros.
A desculpa que uma questão é técnica serve muitas vezes para nos impingirem soluções erróneas. Também é necessário que se não ceda à insensatez de pensar que, se não somos capazes de nos governar, para quê a pretensão de governar a Europa? O preconceito de que tudo o que é de fora é bom e cá dentro é tudo mau não tem razão de ser. Além disso temos que ter a noção de que poder político europeu tem limites, para não cairmos na tentação de pensar que tudo se resolve com o aumento desse poder.
Temos porém que reconhecer que o poder actual dos organismos comunitários é incómodo mas não é excessivo. A verdade é que o seu papel não pode ser somente regulamentador. Esta é uma base aparentemente satisfatória para todas as partes, mas inócua e pouco motivadora da participação popular. Mas estamos nós preparados para aceitar outro tipo de intervenção? Quando as coisas correrem mal não estará a sede do poder demasiado longínqua para acolher os nossos protestos e reivindicações?
Se a Comunidade não nos resolve problemas como o da Quimonda resignamo-nos, mas se o caso fosse somente à dimensão nacional já teríamos a quem reclamar. Devido a ter que respeitar a política da concorrência, a Comunidade é relapsa a intervir no sentido de ajudar alguém em dificuldades. O certo é que assim os grandes comem os pequenos e a nível mundial a sua actuação é suicida Decerto que aceitaríamos um tipo de intervenção mais empenhado para um domínio tão estratégico como este.
Os neo-liberais que dominam a Comunidade esvaziaram-na da sua dimensão política. As suas doutrinas não estão nos fundamentos desta Comunidade, mas eles apropriaram-se dela. A título de defesa dos mais fracos regulamenta-se tudo a nível das relações de trabalho, das condições de prestações do mesmo, dos benefícios sociais e interfere-se até nos níveis de remuneração e doutros factores que dizem poder influenciar negativamente a prestação da economia.
Mas permite-se que os mais fortes se auto remunerem, prestem “trabalho” nas condições mais bizarras, beneficiem do pagamento dos custos da sua vida privada e dos mais ridículos prazeres com um despudor absoluto. Uma sociedade assim não tem bases morais para lhe dar consistência e mesmo que atribuamos boa fé aos políticos não haverá dúvidas que na economia prolifera a mais descarada má fé. A economia não pode assentar na rasteira.
Mais do que nunca é necessário um voto político, não no sentido contestatário, mas no sentido de contribuir para que a Comunidade assuma objectivos políticos mais ambiciosos. A Europa tem virtualidades e os seus órgãos não podem ter somente um papel de polícia, de árbitro e de tesoureiro, mas um papel menos burocrático, mais interveniente, capaz de contribuir para uma realidade mais estruturada, com mais solidariedade.

sexta-feira, 8 de maio de 2009

A construção europeia impõe uma nova aliança

Porque sentimos que o nosso futuro está indissociavelmente ligado aos destinos deste Pais, deste Estado/Nação que é Portugal, é que nos dizemos portugueses. Mas a nossa cidadania é plena e permite-nos interferir, participar, contribuir para a formação da vontade colectiva. Inclusive permite-nos aceder a uma outra cidadania mais larga e até mais profunda.
Por efeito da nossa adesão à Comunidade Europeia pudemos aceder a essa outra cidadania partindo dos mesmos pressupostos: Temos na formação da vontade colectiva europeia os mesmos direitos que na formação da nacional, fazendo-o de forma directa e indirecta. Assim sendo podemos dizer que somos europeus. Qualitativamente as duas cidadanias serão basicamente iguais.
As diferenças que existem na participação nas eleições para os dois parlamentos, no simples entusiasmo em nelas participar, são por demais evidentes e remetem para uma falha no sentimento de cidadania europeia. Não nos sentimos e, por mais esforços que façam, não nos convencem facilmente que o nosso destino está ligado do mesmo modo indissolúvel ao destino europeu como está ligado, e isso nós sabemo-lo bem, ao destino português.
Sabemos que partilhamos muitos valores comuns, que estamos integrados na mesma civilização, mas também sabemos que esta foi construída com base em muitos conflitos, muitos atropelos e que eles podem continuar. Não chega acreditar que isto tudo acabou, é necessário continuar a lutar por isso. A desconfiança não findou porque não acabou o egoísmo, o sectarismo e o espírito de vingança.
A Europa está tão frágil que parece só existir como projecto político enquanto os Estados acharem que as suas complementaridades lhes trazem um benefício maior que as suas rivalidades ainda vivas, o que é claro para os políticos, mas está longe de estar enraizado na consciência dos europeus. O problema é que mesmo os políticos não resistem a um repetido apelo demagógico e podem ser tentados a inverter a situação.
Para atingir a consciência plena de uma nacionalidade europeia haveria que incentivar entre eles outro espírito mais solidário, mais colaborante, mais participativo. A Europa, como hoje existe, nasceu da colaboração entre democrata-cristãos e socialistas. Após a queda do muro de Berlim muito do cimento que mantinha este edifício de pé e com sentido perdeu consistência.
Democrata-cristãos e socialistas perderam a alma, trocaram-na pelo dinheiro. Este, de elemento assessório e instrumental, passou a estar no centro de todas as preocupações, dum lado e doutro da antiga fronteira. Enquanto existia um inimigo comum havia outro brio, outro decoro, outra moral, um objectivo, uma paixão, um outro apego à verdade, à honestidade, aos valores sociais.
A imagem com que ficamos hoje é de um povo europeu ingrato em relação aos esforços que os políticos têm feito pela paz e pela harmonia, não só nos seus territórios, mas também pela influência exercida noutros continentes. É como se esta acção não pague de modo suficiente o desleixo e o desregulamento que se processou noutras áreas e que haveria aliás de contribuir para a crise sobrevinda.
De nada nos serve tentar realçar um aspecto que achamos da máxima importância se não é esse o que sobreleva para a opinião prevalecente. Mas os políticos não estão isentos de culpa ao, para garantir o seu profissionalismo, se deixarem arrastar por uma visão centrada num só aspecto, naquele fazer política atendendo às necessidades que as pessoas sentem no imediato.
O simples apelo a ver mais para além, a lembrança de que, por ausência, podemos estar a pôr em perigo um qualquer futuro, não surte qualquer efeito. Impõe-se uma nova aliança, alguém que nos defina o que podemos esperar em termos de destino comum e que torna tão importante a nossa caminhada conjunta em vez da tentativa de cada qual se desenrascar por si.
Simplesmente os democrata-cristãos já não existam, diluíram-se, deixaram-se arrastar pelo conservadorismo ou passaram a navegar no neo-liberalismo sem freio e sem ideal. Por seu lado os socialistas espartilharam-se, cederam às exigências nacionais, deixaram-se dominar tornando-se mesmo impotentes perante os aspectos económicos globais.
Todos se tornaram incapazes de formular ideias, de projectar destinos, de arquitectar futuros. A única diferença é que a democracia cristã está exangue, os seus poucos elementos que ainda transportam a alma passada estão marginalizados, é reduzida a sua base de apoio. Por outro lado os socialistas podem vir a adquirir sangue novo, o turbilhão de ideias que se sente virá a dar frutos, as cedências à gestão liberal serão inevitáveis, mas não definitivas.
Não é propriamente dos “Velhos”, dos Alegres ou Soares que se espera a chama a iluminar o nosso caminho. A consciência, assim como a noção simples da cidadania não são suficientes para estruturar pensamentos, dinamizar movimentos, vencer a apatia. Espera-se um novo sopro de vida. Espera-se que as próximas eleições europeias sejam o despertar para a participação na construção de um destino comum em que nos sintamos empenhados, responsáveis e que traga benefícios solidários, que não só materiais.
As próximas eleições europeias não podem ser a resignação a vermos durante mais cinco anos a diplomacia brilhante mas estática a dominar o contexto europeu em vez de uma política apelativa, orientadora e motivadora. A questão nacional, quando aflora nestas ocasiões, só revela a curtez de vistas, a cedência à diplomacia de gabinete, a falta de empenho no vencimento das ideias do futuro, do progresso social e civilizacional.
Se os políticos não são capazes, ou por outro lado, só são capazes de discutir mais subsídio para cá ou para lá, mais lugares para este grupo ou para aquele, para este País ou para aquele, têm que ser os homens de cultura a realçar o contributo europeu, mas a não se ficarem pelo passado, porque deste há muito quem entenda, o difícil é traçar um caminho seguro numa atmosfera de nevoeiro denso. O futuro constrói-se com homens que nele acreditem.

sexta-feira, 1 de maio de 2009

A leitura é um acto de humildade

Sempre que há alguém que diz que faz sentido mas não compreende de forma capaz aquilo que eu escrevo fico preocupado. Sempre que há alguém que diz não encontra sentido naquilo que eu escrevo a minha reacção não é assim tão rápida porque vai depender de quem o afirma. Admito não ser fácil para muitos dos bem intencionados encontrar o sentido, mas só na medida em que será igualmente difícil encontrar o “não sentido”.
Já para os mal intencionados seria tudo extremamente fácil, qualquer “não sentido” serviria para a colagem pretendida. Admito que muitos não me chegam a ler, já sabem antecipadamente que eu não direi nada de novo, o que eu digo estão eles cheios de saber, para que irão perder tempo? A isto chama-se aversão, mas contra isso eu nada posso fazer. Felizmente há sentimentos destes que nos ajudam a uma das nossas cada vez mais importantes tarefas: A gestão do tempo.
Cada um lê aquilo de que gosta. Eu assim faço, a não ser que também o tenha que fazer por obrigação. Fazia-o quando estudava e faço-o agora porque não aprendi tudo. E quando o faço garanto que é com humildade. A humildade pressupõe que não há preconceito, que se não está abaixo nem acima, que se pretende apenas compreender bem quem escreve, mesmo tendo que mergulhar nas suas intenções mais primárias.
Se ao ler nos indignarmos, com humildade nos interrogamos sobre a natureza da nossa indignação. Se aderirmos à leitura havemos de nos interrogar sobre a natureza da nossa adesão. Também nos podemos preocupar com a qualidade da escrita mas é um princípio de conclusões limitadas. Elevar o uso de certos termos ao nível do pretensiosismo torna normalmente caricato quem faz esse reparo, porque há ideias que não dispensam o seu uso.
Serão raros os casos em que há duas palavras que tenham o mesmo significado. Há aquela velha diferença entre a via erudita e a via popular, mas isso só se aplica aos latinismos e a língua portuguesa incorpora cada vez mais termos doutras origens. E na verdade chega-se a incorporar termos perfeitamente dispensáveis porque haveria outros de origem mais remota ou de uma outra língua estrangeira e já adoptados anteriormente que serviriam perfeitamente. Simplesmente não há polícias da língua.
Também não falta quem diga que a escrita sobre certos temas exigiria uma linguagem mais aprimorada, com base mais científica. Infelizmente sabemos que há muitos que a usam mas que não a sabem aplicar à realidade. Ou a aplicam a despropósito, isto é, a propósito de tudo e de nada, só para mostrar que são capazes de usar termos que poucos entendam. Ou a aplicam a propósito mas referindo-se a uma realidade que não é propriamente aquela que está debaixo dos nossos olhos.
Isso nota-se particularmente no domínio das ciências sociais. Efectivamente a transcrição de livros científicos que relatam a realidade americana e outras não pode ser feito linearmente. A diferença nas estruturas sociais, a diferença de complexidade de fenómenos que influenciam a vivência pessoal e social e ocorrem em distintas sociedades e tempos é por demais evidente e esquecida.
Somos obrigados a desconfiar daqueles que se referem à realidade local ou nacional nos mesmos termos com que os grandes financeiros nos brindam para nos iludir. O mesmo diremos de todas as outras linguagens fechadas, como o marxismo, de todo o saber vertido em “catecismos” de fácil consulta aos iniciados e de conclusões pretensamente inquestionáveis.
De qualquer modo longe de mim dizer que a qualidade da escrita nada tem a ver com as ideias que se pretendem transmitir. Só que estas têm que ser descaroçadas, retirando-lhes tudo aquilo que possa desvirtuar a sua pureza. Para se compreender o valor intrínseco de uma ideia, tanto é necessário ir à sua génese, como também retirar-lhe aquilo que não constitui mais do que apêndices que se lhe colaram por ocasião do seu nascimento ou da sua evolução semântica.
Quando escrevo a minha primeira preocupação é abordar a realidade, a presente, a histórica, até a previsível, eliminando todos os possíveis efeitos alucinatórios provocados pela ofuscação ou pela resplandecência. A realidade onde vivem, viveram ou viverão as pessoas é mutável, fugidia, para a recolher com a inteligência não chega abrir os olhos.
A segunda preocupação é utilizar as palavras que traduzem as ideias que eu quero transmitir, mas com o significado mais usual no meio em que vivo e em que essas palavras são usadas. No entanto, como a minha Universidade é a vida e a minha Aldeia o universo, a repercussão dessas palavras pode ser local, nacional ou mundial e eu uso-as indiscriminadamente, conforme a que acho mais adequada à situação e não ao leitor, este que me perdoe.
Como escrevo e o faço para me aperfeiçoar, para procurar a verdade, para estruturar o pensamento que de outra forma não é mais que uma névoa que nos paira no cérebro, acho que posso partilhar essa preocupação e as minhas construções mentais com os outros. Mas não irei lá, neste meu propósito, se não encontrar naqueles a quem me dirijo a humildade intelectual necessária para me entenderem e entenderem o mundo de que eu procuro falar.
É verdade que Santos da beira da porta não fazem milagres. Pessoas, perfeitamente alheias ao que se passa no universo, julgam conhecer aqueles que moram perto de si. Para cúmulo é para esses que normalmente reservam os seus sentimentos mais odiosos. É normal que se crie uma barreira que, para confundir, pode provir da reserva mental ou da venal inveja.
Acho que é benéfico para o homem mergulhar de vez em quando na realidade alheia, sem ideias feitas. Verá que é a melhor forma de se libertar da seborreia mental criada por anos e anos de apatia mental, da paralisia em que coloca as suas faculdades só porque não é agora ocasião de pôr em causa verdades assumidas ou o tempo não chega para tratarmos da higiene mental, ou outra desculpa qualquer mais ou menos plausível e aceitável.
Leia e, se tiver tempo, mergulhe no que lê ... com humildade!