sexta-feira, 25 de maio de 2007

O sentimento persecutório no diálogo social

Um diálogo sem barreiras tem que ser assumido como tal entre as partes. Se ele parece pertencer ao domínio da liberdade, também se tem que dar às pessoas a liberdade de o aceitar ou não, mas não de o condicionar.
Mas quando o diálogo se faz através dos meios de comunicação pode haver condicionamentos externos aos intervenientes. Estas pessoas submetem-se a um estatuto editorial que, seja mais ou menos permissivo, nem sempre é respeitado. Mas é nos meios do Estado que há mais litígios a este propósito.
Neste diálogo mediado há intervenientes activos e outros que só o são passivamente. Temos pessoas das mais diversas origens e formações. Em tempos os limites ponham-se a nível de conveniências sociais, de susceptibilidades, de melindres, o que tornava o diálogo difícil.
Hoje o problema coloca-se ao nível da preparação das pessoas para se questionarem abertamente sobre valores que possam estar implicitamente contidos no tema em discussão., o que nem sempre acontece.
O diálogo sem barreiras pode parecer, mas não é uma coisa comum, não é tão vulgar como dão a entender os debates na televisão. A realidade é bem diferente. Só que a habituação faz com que, mesmo que os não partilhemos, já não pomos reservas aos valores que lá são transmitidos.
O nosso mundo se parece se expandir porque a televisão chega a todo o lado, mas está cada vez mais restringido por essas câmaras manipuladoras. Nós deixamo-nos persuadir muito mais por quem aparece na televisão, do que por quaisquer outras pessoas que a ela não tenham acesso.
Nós expomo-nos muito mais àquelas pessoas que nos “dão” um bocado do seu tempo, e a quem atribuímos qualidade, do que aos vizinhos e amigos. Os nossos diálogos são cada vez mais através dos “média”. Há pessoas que já não dialogam com mais ninguém.
Temos a obrigação de nos interrogarmos sobre se estamos a ser condicionados na forma e no conteúdo da nossa relação com o mundo. Se estamos a configurar o nosso espírito para a aceitação e rejeição de certos princípios e até para a ignorância de outros.
Se vemos quase toda a sociedade a aderir a este espartilhamento, que nos resta de liberdade individual? Cada vez menos nos apercebemos que estes diálogos estão tão cheios de barreiras que mais parecem monólogos. Os nossos interlocutores estão cheios de certezas absolutas e verdades infalíveis.
Só nos abrimos àquilo que é discutido na televisão e da maneira como lá é apresentado. Simulamos diálogos que nunca existiram e importamos certezas que criam barreiras que não sabemos controlar. Por isso cada vez mais nos fechamos em mundos irreais a que a publicidade dá um particular colorido.
Assimilando desta maneira as nossas certezas, de forma acrítica, passiva, nunca as chegaremos a controlar, justificar, tornar coerentes com o nosso paradigma cultural. Criamos artificiosamente um verniz que cobre o nosso vazio.
Não é por aqui que chegaremos a ter algum “fundo” para discutir seja o que for. Persuadidos que estamos por verdades temporárias mas inquestionáveis, ficamos inibidos de manter diálogos sobre a realidade que não sejam uma versão tosca do que se passa nas pantalhas televisivas.
A simples divulgações pela televisão das principais questões do momento já nós dá (?) a panorâmica suficiente para termos uma visão actualizada do mundo. ¿Para quê insistir que há outras verdades bem mais profundas, que a televisão é um filtro demasiado fino, que se devem ouvir outras pessoas?
Enchem-nos de lugares comuns cheios de apriorismos “incontestáveis”. Para conversar com verdade temos de nos alhear quanto possível dos modelos televisivos. O nosso património espiritual pode ser fraco mas deve ser um edifício coerente, o que esta assimilação não garante.
Estamos cada vez mais vulneráveis àquilo que chamamos demagogia, que mais não é que o uso pelos outros das suas capacidades de persuasão. Aquilo que é mentira e o que é verdade passam mais facilmente sem contestação pelo filtro da nossa consciência
Um homem livre é aquele que não descura o núcleo duro das certezas que ao longo da vida vai elaborando, mas não deixa de as testar quando achar conveniente e de, sem sofreguidão, as alimentar sempre que pode com novos dados e experiências.
Um homem digno pode deixar cair verdades que passou a achar questionáveis, mas não está imune a louvores ou críticas. Ao encontrar razões para as abandonar e aderir a novas, não renega mesmo assim o seu passado, nem quem possa ter um passado idêntico.Há quem ponha em causa as razões da mudança de outros e alimente no seu ego pensamentos persecutórios, mesmo que só de carácter psicológico. Tais pessoas são indignas e em relação a essas, às que querem ser cada vez mais na mesma, devem ser criadas fortes barreiras pessoais e sociais.

Canoagem contra a maré

O Clube Náutico de Ponte de Lima não deixou os seus créditos por mãos alheias na deslocação das suas Esperanças da Canoagem a Abrantes. Além de subidas ao pódio em várias das subcategorias, venceu esta terceira prova, e o campeonato nacional respectivo, colectivamente.
O mérito é de um grupo heterogéneo de atletas pelas suas idades e características, capaz de brilhar em todas as provas, homogéneo na vontade, na união, no espírito de grupo e grande na dimensão e valor. A grande coesão demonstrada, o apoio mútuo, o incentivo dado pelos colegas e líderes também contribuíram significativamente para garantir estes sucessos.
Mas tal só é possível através de um trabalho profundo, continuado e empenhado de directores e monitores que, numa população tão dispersa como a limiana, conseguem pesquisar, agregar, dar consistência a um colectivo que assim se vem refrescando, reforçando e afirmando cada vez mais no panorama nacional
As dificuldades são imensas. Começam logo pela própria incompreensão de muitos pais em relação à importância, ao carácter quase fundamental que a actividade desportiva assume nos dias de hoje, tanto por si mesma, como pela sua função de encaminhamento dos jovens para um aproveitamento saudável dos seus tempos livres, para a convivência que passe ao lado das sub-culturas lesivas para a juventude mas que sempre se insinuam entre ela.
Até na questão dos custos, muitos pais consideram qualquer gasto monetário que garanta a prática desta actividade (equipamentos, deslocações, refeições) um dispêndio inútil, o que é perfeitamente absurdo. As Associações, com tantos problemas que têm, não dispõem de meios para assumir todo este investimento, mas que custa a ser percebido como tal por vários pais.
Depois de outros problemas “menores”, há o grande problema do local de prática desportiva. Aí toda a gente se diz pronta a colaborar, mas acho que muitos, em lugar de ajudar, só atrapalham. Embaraçam pelo seu silêncio, que simplesmente o falar deste assunto parece perturbá-los.
Uma das razões pelas quais se vive hoje este problema dramático para a modalidade em Ponte de Lima é não se ter pensado seriamente nele e na maneira de o obviar quando se fez o açude e o Centro Náutico. Mas em Ponte de Lima o que interessa é o momento dos foguetes e do cortar das fitas.
Ninguém decerto, dos que tinham obrigação disso, pensou na manutenção em boas condições do espaço adequado à canoagem. O Saber e a Experiência terão ficado para melhor ocasião, como infelizmente é costume.
Esta obra foi importante, o que é diferente de ser bem feita, está longe de ser uma obra de fachada, mas é uma obra que deveria ter continuidade, não se pode ficar por uns anos, como se ela fosse efectivamente só para a ocasião.
Depois de tantas transformações que o Rio levou, das agressões de que foi vítima, pensou-se em o proteger. Se a intenção foi essa, em muito se conseguiu. Mas porque é necessário efectuar agora um estudo de impacto ambiental para fazer um desassoreamento perfeitamente definido, limitado, que está longe de repor as condições existentes no passado.
Erros destes não se deveriam cometer, mas há que o corrigir e não voltar a cair neles. Se a Lei o exige, se tem que ser feito, que se faça, mas em função de uma intervenção continuada que vai ser imprescindível levar a cabo mediante um acompanhamento permanente das condições de navegabilidade do rio. Não se pode andar a pagar estas coisas todos os dias.Que se faça e que haja quem pague. É obrigação, mais do que dever, da Câmara fazê-lo, dar o pontapé de arranque para que não morra nas suas
mãos o sonho, hoje realizado, de ter em Ponte de Lima, o maior Clube Náutico do País.

sexta-feira, 18 de maio de 2007

A dignidade humana defende-se pelo diálogo franco e leal

Quando iniciamos uma conversa com alguém, invariavelmente já carregamos connosco imensas verdades, não só sobre aquilo que nós somos, como sobre aquilo que os outros são, até sem os termos visto antes ou sem os vermos há muito, e sobre aquilo que nós queríamos que os outros fossem.
Aquilo que nós somos advém do que pensamos ser, daquilo que os outros pensam que nós somos e daquilo que nós queremos ser. Nisto está muito do que nós queremos que os outros pensem de nós.
Aquilo que os outros são advém obviamente das comparações que fazemos, do percurso que lhes adivinhamos, do que eventualmente sobre eles nós já conhecemos, das certezas que lhes atribuímos.
Existe pois uma zona de conflito permanente que nós atribuímos a erro ou precipitação dos outros e os outros normalmente retribuem do mesmo modo. Esse conflito pode existir sempre porque, para lá disto, nós podemos ter um conflito interno que interfere no nosso relacionamento.
Tal conflito será tanto menos grave quanto menos o que os outros pensam de nós esteja longe do que nós somos e/ou daquilo que nós queremos ser, e esta opção é nossa.
Igualmente será tanto menos grave quanto menos o que pensamos dos outros esteja longe do que eles pensam de si próprios e do que eles próprios querem ser e da importância relativa que atribuem a este dois aspectos.
Nunca conseguimos que haja um equilíbrio perfeito nos nossos relacionamentos. Basta a nossa constante procura de um equilíbrio interno, a busca incessante de uma nova centralidade interior, para podermos estar a colocar os outros num diferente enquadramento.
O nosso gosto pelos outros não é eterno. Por vezes deixamos de gostar deles mesmo sem eles mudarem ou passamos a não gostar deles caso haja uma alteração na maneira como se nos apresentam.
O nosso desejo de manter uma relação saudável fazer-nos-á avaliar as partes em que sempre dividimos os outros e pesar se aquelas de que gostamos compensam as que rejeitamos. O certo é que mesmo que isso aconteça a relação pode deteriorar-se irremediavelmente.
Independentemente da divergência de opiniões, a harmonia pode existir se tivermos o mesmo conceito de dignidade humana. O nosso conceito de dignidade pode-nos levar a, mesmo assim, manter uma concordância sólida de valores.
Mas nem sempre se consegue sustentar uma forte convergência na defesa da dignidade das partes. Quando tal não acontece facilmente se cria um crescente espaço de indefinição e desagrado entre o que os outros são para nós e aquilo que nós gostaríamos que eles fossem.
Esta situação leva, quantas vezes e quando menos esperamos, ou nós ou as pessoas com quem falamos a arrogarem-se o estatuto de conselheiros, atribuindo-nos mais ou menos ascendente sobre os outros. Ou até de justiceiros se formos mais atrevidos.
Mesmo que procuremos não nos pormos a jeito, há tanta gente com tantas certezas adquiridas que, se nós não aceitarmos alguma condescendência, não chegamos a admitir conversar com quem não sabemos se vai dar de modo intempestivo largas a esses laivos de arrogância e agressividade.
Para além de os outros não serem obrigados a ter certezas, não são obrigados a revelá-las e muito menos a defendê-las. Não podemos entrar na contestação sistemática às certezas dos outros, muito menos sem o seu assentimento, sem deixarmos às suas faculdades a avaliação e a tomada de todas as decisões que os afectem.
Não podemos praticar quaisquer actos de coacção confundindo-os com eventuais poderes de persuasão. As nossas certezas podem-no ser só para nós. A sua natureza e a forma pelas quais nós as adquirimos devem-nos fazer pensar sobre a forma como as queremos transmitir. Não será normal que o façamos por meio diferente daquele pelo qual as adquirimos.
Na realidade assumimos muitas “verdades” por uma questão de fidelidade à família, ao grupo, à sociedade. Maugrado haver uma sociedade cada vez mais livre, com características de heterogeneidade e essa fidelidade estar longe de ser generalizável, em relação a toda a gente.
Muitos têm dificuldade em “beber” das fontes e outros não se sentem obrigados a aderir a elas pelas mesmas vias pelas quais nós aderimos. Muitos não podem pôr em causa as suas próprias certezas e não nos cabe a nós fazê-lo. Seja qual for a sua natureza e a forma de aquisição, essas certezas fazem-lhes falta, como as nossas nos fazem falta a nós.
Mesmo que nós não precisemos já de certezas que em nós advieram de qualquer decisão não consciente, isso não nos dá o direito a contestar as dos outros. Se nós já as substituímos, os outros podem não as substituir facilmente e podem continuar a precisar de certezas assim adquiridas.
Quando conversamos franca e lealmente com alguém respeitamos-lhe o ser, e mesmo quando pensamos poder influenciá-lo, não devemos ter preocupações de ascendente, nem ultrapassar as barreiras que ele possa ter instituído para defesa da sua integralidade.

As regiões – poderes positivos ou de oposição e bloqueio?

A regionalização consistirá no direito a escolher um modelo próprio de desenvolvimento, presumimos sempre mais adaptado, nos aspectos rural, industrial, turístico, económico em geral, ambiental, urbano e cultural às condições existentes em cada região.
O modelo político a adoptar tem que ser o mais adequado às condições existentes no País, assegurando o princípio da igualdade entre todos os cidadãos, quanto ao usufruto dos benefícios gerais e à repartição dos encargos e dos meios financeiros disponíveis.
Infelizmente este aspecto político é o mais referido e reclamado. Mas se é legitimo reivindicar alguma parcela de soberania, também é justo que nos seja pedido o que viremos a fazer com ela, maugrado muitos convencidos não gostem que se lhes pergunte, já o “sabem” há décadas.
O acto primeiro da efectiva regionalização é a institucionalização dos órgãos próprios de poder das regiões, equitativamente dotados dos meios financeiros indispensáveis à sua acção e que os aplicarão segundo o modelo de desenvolvimento escolhido.
Um órgão de poder regional não pode ser a direcção de uma associação de municípios, porque não vai exercer poderes delegados por estes. Não vai exercer somente poderes de coordenação, recebendo as solicitações e repartindo os meios por rateio.
Este novo órgão vai ter um poder efectivo que necessariamente irá quase sempre contra o interesse de alguns municípios e a favor de outros. Por isso é necessário um acordo de princípio para implementar um modelo político de carácter nacional, isto é que não possa ser enviesado por acordos locais e circunstanciais e obvie a conluios e marginalizações.
Numa associação devem respeitar-se os interesses dos associados até ao pormenor possível. Num órgão de poder autónomo como este, continua a ser tido em conta o interesse manifestado pelos órgãos de nível inferior, mas não pode, sob pena de ficar manietado, ir àquele ponto, tendo até por vezes de avançar contra a opinião da maioria, quiçá de todos.
Muitas vezes delegamos no governo do País com a sensação de que o não faríamos se não fossemos obrigados a isso, se acaso tivéssemos outra opção, que não temos, de exercer de outra forma os nossos direitos democráticos. Por exemplo promovendo um referendo constitucional.
Mas por princípio para um País tem que haver sempre um só governo, gostemos ou não dele. Podemos puxar a corda, dar-lhe mais ou menos elasticidade mas sempre conscientes que ela pode correr o risco de se quebrar e de podermos cair na anarquia.
Só que mesmo esse governo não é senhor de toda a soberania, há algum balizamento da sua acção que é exercido por outros órgãos e até pela opinião pública. Há uma parcela de soberania que está entregue a esses órgãos e de que eles não podem prescindir.
Quanto às regiões esse balizamento será ainda maior. Enquadradas entre o todo nacional e os municípios, financeiramente mais condicionadas que o governo, também mais próximas dos eleitores, a sua margem de manobra terá sempre bastantes constrangimentos.
Os seus poderes têm que ser definidos com a necessária precisão para que só no mínimo conflituem com os do governo e dos municípios. Estes serão sempre tentados a aumentar as suas limitações nas áreas que mais prezam e assacar-lhes as responsabilidades que não querem.
Mas também as regiões não se podem constituir como poderes de oposição e bloqueio que se acrescentam aos das autarquias para enfrentar o governo, também por nós escolhido. Nem se podem arrogar poderes que, acrescentados aos do governo, tirem do mapa político as autarquias, que nós elegemos.
O poder das regiões seria um falso poder se fosse só um acréscimo de voz, um poder contestante. Mas também seria um poder inútil se fosse avassalador para os municípios. Tem que ser um poder consciente do seu lugar, do seu espaço de actuação e que aja sem peias.
Definida a profundidade da sua intervenção, a autonomia quanto aos meios financeiros, ao poder regional faltará ganhar independência das boas e das más vontades, ter a solidariedade possível com o poderes convergentes.
A ideia que muitas pessoas têm sobre um poder regional baseia-se muito no princípio de que ele não será um poder acrescido ao nacional mas antes suavizará esse poder, amortecerá os seus efeitos mais agressivos.
Amiúde ao poder regional atribuem-lhe somente poderes negativos, quando o que se espera é que use, e o saiba fazer bem, os poderes positivos que lhe serão outorgados.

sábado, 12 de maio de 2007

A suspeição turva irremediavelmente o nosso espírito

É vulgar uma discussão acalorada sobre uma acusação determinada redundar num seguinte dilema em que uns pretendem que uma determinada norma é genérica o suficiente para englobar o caso e outros que essa norma tem uma aplicação restritiva e não lhe é aplicável.
Normalmente isto acontece assim porque todas as nossas divergências descambam para a existência ou não de dois pesos e duas medidas, para a existência de uma questão de favorecimento na aplicação da Lei.
Porque há a ideia, geralmente razoável, de que nada é inocente e há sempre alguém a beneficiar propositadamente destas dúvidas e pretendidas incoerências. Quem redige as leis ou quem as aplica é sempre acusado de, com algum propósito escondido, ora encobrir ora descobrir.
Para activar mais esta permanente suspeição temos ainda as normas legais que determinam que em caso de dúvida os suspeitos são inocentes, o que subjectivamente levará alguns a serem mais expeditos em tentar a sua sorte no desrespeito da Lei.
A suspeição assume às vezes um carácter quase obsessivo, em tudo vemos uma tentativa de enganar alguém. Mas na prática, para nosso desespero, o que mais se aplica é a conclusão de sermos todos inocentes, de alguma forma até vítimas de uns tantos mal intencionados.
Só que esta conclusão não é suficiente para nos deixar sossegados. Passado algum tempo lá voltamos às ideias antigas e vá de acusarmos tudo e todos de estarem conluiados no desrespeito da lei para obter benefícios indevidos. É uma conspiração que se urde no silêncio.
As suspeições retroactivas são as mais difíceis de esclarecer. Vêm normalmente à baila por comparação com casos recentes o que torna complicado fazer o enquadramento legislativo adequado.
Há ainda o perigo de estarmos a comparar casos em que a natureza só aparentemente é semelhante. As circunstâncias mudam, as opiniões mudam, são diferentes os valores em que o legislador se fundou para elaborar a legislação aplicável. O nosso juízo só pode por em dúvida aquilo que conhece.
A suspeição tem uma autonomia invejável. Faz o seu caminho por tudo que é sítio, por tudo que são épocas, mesmo as mais remotas, por todos os grupos, famílias e gerações. A suspeição corrói-nos as raízes.
Há uma necessidade premente de controlarmos a suspeição. Em vez de constituir aquele alerta que às vezes nos falta, corre o risco de se tornar um anestesiante que faz de nós inoperantes e cismáticos. Quanto mais suspeição manifestamos mais enganados somos.
Ninguém gosta que lhe vendam gato por lebre. Isso tanto vale para a actividade económica como para a social e política. Mas não podemos confundir todo o comércio com usura. Não vamos a lado nenhum enquanto não retirarmos do nosso espírito este farisaísmo doentio que herdamos.
Historicamente já houve tentativas de, começando pela actividade económica e perante a dificuldade de separar o legítimo do ilegítimo, se proibir tudo o que fosse para além da troca directa.
Ora se se confirma que o mal está no vil metal, não é acabando com ele mas seguindo-lhe as movimentações que podemos ter algum sucesso. Mas nós lançamos antes as nossas suspeições para os vizinhos e extasiamo-nos a olhar para aqueles que são efectivamente ricos, não se sabe como.
Quanto o mal não está na Lei e ela é desrespeitada sentimo-nos feridos com isso, com a impotência de a pôr em prática por parte de quem detém o poder. Mas quando o mal está nela, mais nos sentimos despeitados, porque percebemos que os poderosos chegam com os seus tentáculos à sua feitura.
Um clima de suspeição generalizada só termina quando a exigência e o rigor forem aplicados naquele acto de concepção e regulamentação da estrutura mais apropriada a uma boa convivência social, simplificando e limitando ao máximo a existência de dúvidas, preparando devidamente quem as deva passar à prática.
Os benefícios que alguém pode usufruir de alguma actividade, de alguma posse, no fundo o resultado de uma outra posse ou duma actividade anterior, devem estar devidamente regulamentados para que os benefícios ilegais possam ser perfeitamente identificados.
Mas as leis, mesmo as punitivas, não podem ser o reflexo de espíritos persecutórios e doentios, como por vezes os nossos correm o risco de ser. Na realidade nós comprazemo-nos quando alguém é apanhado nas malhas da Lei, vai a inquérito, é arguido, mas a partir daí já só nos vem a compaixão, condoemo-nos irremediavelmente, afinal quem é culpado de quê?
Na verdade os nossos estados de alma são tão variáveis, tão facilmente assumidos, que não resultam de raciocínios lógicos mas já quase os temos à mão para corresponderem aleatoriamente às incompreensões que se vão manifestando no nosso espírito.
A maioria de nós, com mais ou menos sacrifício, podemos ter que assumir vários papéis, em vários cenários, em diferentes contextos sociais, mas não está preparado para isso. Alguns há que são capazes de representar vários estados de alma e simultaneamente beneficiar de todas as situações através de qualquer imaginário artifício. Não suspeitemos de todos.

sexta-feira, 4 de maio de 2007

As expectativas sociais e as possibilidades do crescimento

Nos dias de hoje, de forma mais evidente do que sempre aconteceu, as pessoas não se diferenciam pelas posses que têm, pela “classe social” a que pertencem, mas sim pelas expectativas que transportam.
Quem tiver as expectativas conformes à sua condição sócio-económica é visto como um retrógrado, quando muito um conformista. Na realidade essa conformidade deve ser combatida no sentido de que ninguém pode, à nascença, ficar agarrado a uma condição eterna.
A mais importante das lutas, a luta pela liberdade só tem sentido quando se coloca como princípio basilar uma igualdade que dê a todos as mesmas “possibilidades” de acesso a melhores condições económicas e sociais.
Esta constatação levou muita intelectualidade, muitos jovens a optar pelo comunismo como única forma viável de atingir este desiderato. Nisto, como noutras epopeias em que o pensamento humano se meteu, só a experiência veio a provar quanto a mente humana é “perversa” e relapsa a determinismos.
O corporativismo salazarista tudo fez para conter as expectativas das pessoas dentro de parâmetros que o sistema pudesse controlar. Para tal o regime utilizou todas as artimanhas, umas legais, outras menos ilegais, outras claramente ilegais e reprováveis. Cortava à nascença todas as possibilidades.
O regime haveria de cair por efeito do isolamento internacional, pelas dificuldades próprias da guerra, pelo imperativo de acabar com o condicionamento industrial e promover o crescimento económico e por efeito de um golpe de misericórdia dado por um grupo “vencido” de militares. Os grandes valores invocados não escondem as razões mais triviais, mas louvemos muitos efeitos positivos, lamentemos alguns.
Se a igualdade de possibilidades deve ser colocada como objectivo, nem à partida, nem à chegada, nem em nenhuma fase da evolução são passíveis de assumir carácter absoluto. A sua graduação depende das próprias condições da sociedade no seu todo. Quem está na defesa do progresso deve pugnar pela sua evolução no sentido dessas possibilidades serem cada vez menos teóricas e mais práticas, não descurando a implacável realidade.
O desenvolvimento natural da sociedade coloca à pretensão de uma igualdade de possibilidades um pesado obstáculo. Os sectores de topo criam constantemente novas expectativas, incentivam com a imaginação e espalham com a publicidade novas formas de “gozar a vida”, novas ambições, “novos prazeres”, novas formas de estar melhor com cada vez menos trabalho.
Vai-se assim criando um maior afastamento entre quem está na base da pirâmide social e quem está no topo. Como as expectativas se espalham e os meios de as satisfazer não, antes pelo contrário, há cada vez uma maior diferenciação e por esse efeito uma maior dificuldade para quem está na base poder subir alguns degraus.
A nossa entrada na Comunidade Europeia desligou-nos definitivamente da herança salazarista e criou um efeito perversíssimo a que os governos se não tem conseguido opor com eficácia. Nunca nenhum foi além das boas intenções e então o de A. Guterres foi um desastre. Porque nisto sabe-se como as expectativas se geram mas não se sabe como elas se devam abrandar.
As pessoas levam a mal serem chamadas à atenção para reduzirem as suas ambições, muito mais para serem realistas, pior ainda para fazerem sacrifícios e voltarem a uma condição que parece lhes não pertencer já, porque nunca pensaram ter que lá voltar.
Normalmente só uma hecatombe social fará com que as pessoas aceitem isto, porque neste caso a imersão é global e o nível final se mantém sensivelmente idêntico. A consciencialização de largas camadas sociais de que estamos numa situação com este cariz é o grande mérito de Sócrates.
Mas este é só um primeiro passo para quem quer lutar para que a sociedade seja mais solidária e humana. Até aqui só se conseguiu uma certa neutralização dos sentimentos que nesta perspectiva são mais negativos: o egoísmo, a inveja e a vaidade.
O segundo passo é conseguir que o leque de expectativas sociais se não continue a expandir ao mesmo ritmo do crescimento económico. A necessidade de mais expansão económica não deve ser conseguida utilizando só as velhas fórmulas, próprias do capitalismo selvagem, de apelo aos sentimentos mais ferozes, que agravam os problemas sociais.
Normalmente só copiamos os aspectos mais primários dos manuais de empreendorismo. É necessário que tenhamos em consideração aquilo que no aspecto social as análises de muitos gestores de topo já comportam. E que os agentes sociais não contribuam para o exacerbar de expectativas desmedidas, que agravam os problemas sociais e incentivam as agressões ambientais.