quinta-feira, 28 de dezembro de 2006

D. Pedro IV e as Feiras Novas

Qualquer nova informação é importante. Mais importante também é a forma de apresentar essa informação, de a tornar apelativa, interessante, significativa e esclarecedora.
Amândio de Sousa Vieira ofereceu-nos agora, neste Natal de 2006, uma brochura que satisfaz todos estes requisitos e sobre um tema como as Feiras Novas que a todos nós muito diz.
“D. Pedro IV e as Feiras Novas” relata-nos os trâmites que o processo de criação/autorização das Feiras Novas teve que seguir para que fosse permitido que em 1826 se realizassem as primeiras festas/feiras de três dias (19, 20, 21), que as festas religiosas de um dia, é certo, já existiam antes.
Sem por isso causar qualquer controvérsia, o processo decorreu durante regências e reinados diversos, imune às conspirações e conflitos que se desenrolaram num curto e atribulado espaço de tempo.
De leitura obrigatória para quem se interessa pela forma como se estruturou o nosso passado social, este pequeno livro ainda tem espaço para nos falar do Cardeal Saraiva que estaria em Ponte de Lima por ocasião desta festas e da célebre Semana Santa em Agosto feita em honra de Rainha D. Maria II, por ser entendida como a forma mais digna de o manifestar.

Balanço de um ano

Por esta ser uma época de uma natural tristeza, seja ao nível da temperatura, da paisagem e até da cara das pessoas. Por ser altura de algum recolhimento, que até pode ser de meditação, arrependimento ou exaltação, é hábito fazer agora o balanço de um ano que acaba.
Não é meu costume fazer balanços deste género que, como todos, temos de fazer muitos outros mais importantes e mais amiudadas vezes. O balanço da semana, do mês, e o mais trabalhoso de todos, no quinquénio. Quanto ao ano prefiro de longe o ciclo das colheitas.
Mas, que até há uma grande aversão pelo que é americano e eles o adoptam, de Outubro a Setembro, vamos respeitar o nosso, como tudo nesta coisa de dividir o tempo, um pouco arbitrário, de Janeiro a Dezembro.
Politicamente foi um ano frustrante. Tal talvez se deva, não há mesmo dúvida, a ser o primeiro de uma série de anos sem eleições, o que só por si representaria normalmente um alívio para o eleitor, mas que representa efectivamente uma carga de trabalhos por um lado e uma falta deles por outro.
Efectivamente há dois poderes que olham para o primeiro ano com olhos diferentes. Se o governo nacional faz agora o pior para aliviar um pouco a pressão lá mais para o fim da legislatura, o governo local nada faz para deixar os seus projectos e o respectivo dinheiro lá mais para o fim do seu mandato.
Mas se o governo nacional apoquenta alguns e mexe com todos, o governo local põe um pouco de calmaria na festa. E nós, sem outros apriorismos, sem revelar os nossos amores, estamos para analisar o pouco que se fez por cá.
A E.T.A.R. está, enfim, acabada e em funcionamento, de forma eficiente, o que é de aplaudir. Só se lamente que labore muito abaixo da sua capacidade, que só sirva uma pequena rede de saneamento, face à dimensão do concelho. A própria rede na Vila apresenta lacunas evidentes. Quando há muita pluviosidade nota-se que muitas ligações, decerto antigas, estão a alimentar as condutas de águas pluviais e não as condutas que vão para a E.T.A.R. e que até acontece o contrário, o que devia ir directo para o Rio vai encarecer o tratamento na E.T.A.R..
A colocação dos adutores de água que a hão de levar da E.T.A. de S. Jorge, junto à barragem de Touvêdo, a quase todo o Vale do Lima e não só, tem causado tais e tão injustificados transtornos que não há memória doutra obra assim. E ninguém se digna explicar seriamente porque tem que ser assim, que se não tem então estão a fazer de nós parvos.
O Festival dos Jardins deste ano teve algumas ideias interessantes. Dividi-me, perdoe-me o Director, entre o Jardim Português Integrado, que só peca pelo nome e o Sonho Meu, Sonho Meu. A ideia mais forte deste jardim vencedor era a de um barco de papel que nos levaria a um mundo de fantasia. Ora o seu papel era impresso e transportava precisamente as ideias deste jornal, o Alto Minho. Foi pois um prémio para o autor, os votantes e para os que colaboram neste Jornal.
Salientemos a inoperacionalidade do canil, a desordem da feira, a anarquia do nosso Verão. Muitos virão ao sarrabulho e a banhos em Agosto, mas a maioria não vem cá deixar os tostões e os de cá vão pô-los a render lá fora. È evidente que quem cá vem não quer qualidade, incapazes que somos de a oferecer nestas condições. Nós e os nossos imigrantes já nos sentimos cá a mais.
As nossas velhas festas estão a sofrer alterações que não controlamos. Os estereótipos impõe-se de tal forma que o poder municipal e de freguesia vão a reboque. Impingem-se festivais de folclore repetitivos como símbolos de originalidade e naturalidade. Copiam-se formatos para jovens sectários. Salvam-se as bandas de música que inovam e tentam remar contra a maré.
Um excelente Festival Folclórico da Confederação Internacional realizado em 1 de Agosto foi o que de melhor ocorreu neste domínio em Ponte de Lima. Grupos formados por arménios, chilenos, chineses, filipinas, hawaianos, sérvios e venezuelanos deram um espectáculo admirável, de classe mundial, que, no meio da trivialidade reinante, passou despercebido a muita gente que não esperaria tal qualidade e até diria que era mais um. Aqui o “folclore” enganou muita gente.
Tanto se cantam loas a coisas tão fracas que quando o Bom, o Excelente ou mesmo o Sublime nos chega, já ninguém acredita. Esperemos que se continuem a aproveitar estas oportunidades, já que está fora do nosso alcance organizá-las.
As Feiras Novas continuaram a revelar a sua imensa atractividade e a mostrar quão difícil é fazer a sua reconversão. A falha na iluminação, no fogo de artifício, nas condições higiénicas, se tornaram a festa menos esplendorosa, não foram de molde a toldar a sua grandiosidade, que as pessoas ficam cegas só pelo ambiente em que elas são vividas.
Mas tudo tem limites e cada vez mais se tem de pensar se é vantajoso manter tanta grandiosidade com tão pouca qualidade. Muitos dirão que, fosse tudo muito bem limpinho e organizado, e não viria cá tanta gente, a esta “nossa” pretendida Terra Rica da Humanidade.
Enfim fez-se um seminário sobre este tema no qual se desvendaram alguns propósitos. De entre estes, destaque-se o ridículo de pretender colocar a valia desta Terra ao nível do sarrabulho. Mesmo que saibamos que o Português dá a máxima importância à “mandioca”, por mais que queiramos reduzir a cultura à gastronomia, saibamos medir as proporções.
A Confraria do Sarrabulho, essa talvez enredada pelas desavenças entre o gastrónomo-mor Jorge Sampaio e o neo-hoteleiro Daniel Campelo, não sai da cepa torta, depois de um início já periclitante, que a aposta no bízaro já deu o que tinha a dar. O porco de Famalicão é o que está a dar e continuará assim por muitos anos.
Mas, voltando à Terra Rica, o seminário teve muita qualidade, tanto pelas intervenções de alguns portugueses, como dos três espanhóis que cá nos vieram transmitir a sua sabedoria. O contra foi que se saiu pouco da pedraria, da urbanística, da paisagem e falou-se menos da tal imaterialidade, que, lenta, se esvai com o que de mais genuíno se poderia preservar.
Que valeu, valeu. Já se vamos aproveitar alguma coisa, disso não sabemos. Uma intervenção profunda no Centro Histórico será dispendiosa e tem que ter em atenção os objectivos últimos que se querem atingir e que estão por definir. Há exemplos de sucesso mas também de muita desilusão. Encontrar um projecto consistente, auto sustentável e perdurável ainda vai dar muito que fazer.
Aquilo que poderia ser o grande momento do ano foi desperdiçado por inépcia da Câmara. A Carta Educativa é uma manta de retalhos, que devia ser estruturante mas promove a indefinição, que devia ser precisa mas é vaga, que deveria constituir uma mola de arranque para o futuro mas não sai da utilização dos velhos paradigmas de soluções pontuais e capelistas.
Na literatura o concelho mexeu, tendo sido apresentadas algumas obras de valor, em particular a nível da poesia, que o nosso ambiente é propício a esta maneira mais pessoal de abordar a realidade ou de “fugir” a ela.Em 2007 esperemos colher alguns frutos dos investimentos em projectos, da aplicação dos conhecimentos e da experiência obtidos, da correcção dos erros detectados mas não ambicionemos demasiado. É que ainda vamos estar na primeira metade dos mandatos locais e só para o ano seguinte se vai investir mais.

Os benefícios do micro crédito solidário

Esta história também podia ter como titulo “O azar de uns é a sorte de outros”. Efectivamente foi após o nosso amigo António Melo ter sido espoliado do seu instrumento de trabalho, a caixa de engraxador, que houve logo quem se lembrasse de que esse negócio, de certo modo desaproveitado pelo António, podia ser interessante para fazer uns trocados.
Que com certeza se o António vier a recuperar a sua caixa terá igualmente lugar. O episódio do desencaminhamento da caixa serviu sim para que certas pessoas, que nada tinham a ver com ele, soltassem a célebre palavra “Eureka”.
Juntou-se um grupo, cada qual contribuiu com o que pôde e eis que surgiu uma caixa nova, brilhante, esmerada, apetrechada com o que de mais moderno há nesta arte milenar de engraxar os sapatos dos outros que, lembrem-se, é bem diferente daquela outra em que alguns são artistas: o lamber das botas a alguém.
Ponte de Lima teve bastantes daqueles verdadeiros artistas na arte da engraxadela. Lembro-me de, no largo se Camões, cada café ter o seu engraxador preferido mas eles não se limitavam aos clientes de cada um, antes se esmeravam em fazer bom trabalho e conquistar clientes aos outros. Era uma competição sadia, levada por uns mais a sério, por outros mais desportivamente mas que não ia além de uma troca de elegantes mimos.
Os mais velhos lembrar-se-ão do João da Mena, do “Chicago”, do Tone “Picado”, do Abel dos Jornais e dos seus filhos. Houve depois um período áureo com estes e outros rapazes a fazerem verdadeiros campeonatos, principalmente nos domingos de manhã, no sentido de apurar qual o mais rápido e o mais eficaz a polir os sapatos alheios.
Sucedeu-se um declínio, fruto dos ténis, de novas técnicas de engraxadela no domicílio, da poupança em tudo que envolvesse algum dispêndio de dinheiro. O Largo de Camões ficou vazio.
Mas eis que pelos acontecimentos relatados algo de novo ocorreu. O micro crédito, tão louvável que já mereceu um Prémio Nobel, surgiu em Ponte de Lima e tem merecido os maiores elogios. A aventura ainda é recente mas auguramos um futuro auspicioso a este empreendimento pela adesão que tem tido.
O nosso novo engraxador não necessita de apresentação, que em menino era um daqueles que faziam as delícias de quem queria ver uma competição salutar nos domingos de manhã. Trata-se do Manuel Ferreira Soares, para os amigos Amado.
O Amado pratica um preço perfeitamente razoável e tem já angariado muita clientela. E mais, para atrair o elemento feminino, teve a feliz ideia de praticar preços diferenciados conforme os atractivos manifestados. Claro que uma menina do Porto de passagem por Ponte de Lima aproveitou a oferta, mas o certo é que gostou tanto do serviço que no fim o pagou a dobrar.
Temos a certeza que o negócio vai prosperar e que, aprendendo com este caso, outras pessoas se juntarão para ajudar mais alguns noutras soluções por via do trabalho. E que aqueles que precisam de um pequeno motor de arranque recorrerão a esta espécie limiana de micro crédito.
Tudo o que possa ser feito para incentivar outras e diferentes iniciativas que minimizem problemas sociais e promovam o bem-estar daqueles que mais dificuldades encontram nas suas vidas, é louvável. Um Bom Natal.

sexta-feira, 22 de dezembro de 2006

O sortilégio do nascimento ou o cerimonial das prendas

A maneira como vivemos as festas depende muito da tradição e do modo como esta nos foi transmitida, mas a nossa experiência particular também é marcante. As festas vão mesmo evoluindo conforme as nossas condições e nós vamos intervindo ao ponto de, às vezes, subvertemos a sua natureza.
Não digo propriamente isso do Natal que, sendo uma festa muito antiga e generalizada, com diferentes formas de ser abordada, algumas mais apropriadas outra menos, tem algum substrato e algum exagero comuns. Cada um vive o Natal de modo particular, mas vai beber à fonte de todos os Natais.
Já se assume hoje em dia que o Natal começa por ser uma festa de presentes, de tal modo que o exagero é evidente. Numa sociedade consumista seria sempre de esperar que o comércio explorasse ao máximo esta última chance de se desfazer das suas mercadorias antes do fim de ano.
Tudo bem, o certo é que no espírito de muitas pessoas este aspecto, que tem a sua raiz lendária nas prendas levadas ao Menino pelos Reis Magos, suplantou tudo o mais, qual ilusão de que seria por um gesto trivial que nós iríamos corrigir um ano de fraco relacionamento com os amigos e a família.
É que para as crianças o “cerimonial” das prendas tem significado. Poderão assim memorizar alguns momentos mais relevantes da sua infância. Já os adultos não conseguem reduzir um ano de vida a um momento significante, a não ser que este momento seja muito negativo, o que não será o caso.
Depois a prenda é para ser um acto de vontade que não espera compensação, muito menos ao nível de uma outra prenda da mesma natureza e valor. Se é aceitável, e quiçá desejável, que entre adultos se possa trocar prendas, reconhece-se que é raro que não se esteja à espera de uma retribuição qualquer.
Nos adultos há uma tendência, em certas pessoas imparável, de avaliar as prendas e de as colocar na conta de ganhos e perdas. As crianças, como é evidente, colocam todas as prendas nos ganhos, com parâmetros diferentes dos nossos para avaliar o seu valor.
O certo é que hoje as crianças, graças à publicidade e porque lhes transmitimos cedo os nossos valores, cedo começam a avaliar as coisas também pelos nossos olhos. Enfim nós contagiamos o mundo todo com a nossa hipocrisia.
Façamos então um esforço para descontaminar o Natal deste aspecto contabilístico que o desvirtua e lhe corrói os fundamentos. Procuremos dar-lhe um significado mais próximo da genuinidade. Embora perto do Fim de Ano, como tal época de balanços, retiremos a balança do nosso horizonte natalício.
Temos de fugir da banalidade de esperar dos outros contra-prendas em géneros. A prenda só pode ter como contrapartida um esforço do outro para uma melhor compreensão no relacionamento futuro e isto é legitimo esperarmos mas não mais do que isto.
Um presente só pode ser mais uma tentativa nossa, repetível ou não, para mostrar a nossa disponibilidade em sermos amigos de alguém. Com presentes não compramos ninguém. Se alguém não estiver disponível para a nossa amizade corremos o risco de estar a injectar hipocrisia na nossa vida.
Mas o Natal felizmente que não é só prendas. O Natal tem como fundamento a festa do nascimento, sacralizemo-lo ou não, façamos dum nascimento particular a salvação do mundo ou de todos os nascimentos sérias apostas no futuro, na certeza de que a Humanidade chegará um dia a honrar o seu nome.
O Natal é o tempo da inocência maior que reside em quem nasce. Partilhando a esperança do provir, também nós nos congratulamos pela nossa existência e não é agora que nos vamos interrogar sobre a nossa razão de ser. A veneração do Menino é o deslumbre pela criação, enquanto acto que a simples interacção de forças ditas “brutas” não parecerá ser capaz de gerar.
O sortilégio de termos a capacidade de procurar no âmago da nossa memória as razões do ser, e de buscarmos na matéria o acto que despoleta a criação e as razões da sua própria “memória”, não são de molde a impedir que sacralizemos momentos marcantes, actos determinantes que fazem um percurso que terá sempre por incógnita maior o nascimento, por mais pequeno a que o possamos reduzir.
O Natal é uma vivência expressiva que nos permite situar num dia, numa época, aquilo que nos parece espartilhado e desconexo no dia a dia. Mas, não sendo tudo redutível ao Natal, havendo outros momentos igualmente importantes na nossa vida, não queiramos que quem é mais vulnerável e dependente reduza a vida a uma sequência impossível de Natais.
A sacralização do Natal insere-se na nossa história de memórias, de sabedorias e de premunições. A nossa capacidade imaginativa é a grande responsável pela sua adaptação ao correr dos tempos. Mantê-la viva pressupõe que não entreguemos a manutenção do nosso espírito a quem se pretenda mais “entendido” nestas coisas do sagrado, mas que nos preocupemos todos com isso.
Não há uma particular mensagem de Natal. Pressupomos que haverá mensagens que no Natal passarão melhor. Mas também é no Natal que surgem mais mensagens que nada têm a ver com a vivência que era pressuposto favorecer.
Então cada um tem de se preocupar em transmitir à sua maneira uma mensagem simples e séria, que é importante estarmos bem conscientes da maneira como ela é entendida pelos outros. Isto é, a mensagem não depende tanto da sua verbosidade mas mais da sua autenticidade.
Quando eu digo que quero que nós vivamos num espírito de comunhão, concórdia e paz digo que, além de escolher a forma que acho mais adequada, me preocupa que o conteúdo corresponda àquilo que literalmente os outros são chamados a entender.
Acreditamos que é possível que, com este espírito, outros se deixem contagiar. O primeiro passo é despoluir o ambiente dum mercantilismo atroz, manietante e decerto mais válido e apropriado para outras ocasiões.

terça-feira, 12 de dezembro de 2006

Arte serôdia para quem não precisa de saber ler

Longe de mim a pretensão de reescrever a história. De retocar quadros, retirar figurantes e colocar lá outros. Houve quem o fizesse e as técnicas à altura nem eram tão boas como hoje. E embora nós estejamos precavidos há sempre quem o continue a tentar, se não para ficar na história, para obter efeitos imediatos.
Quando olho para o nosso percurso histórico não vejo imagens fixas, horizontes iguais, figuras estáticas, gestos parados. Tenho uma visão histórica dinâmica embora admita reduzi-la a uma visão estática, datada, temporária essencialmente para poder comunicar.
Estou sempre disposto a admitir repensá-la, revê-la, reorganizá-la. A integrar na minha visão as visões instantâneas, fotográficas que outros e eu próprio nos vamos fornecendo. No pressuposto porém de que a História é muito mais que a história da Arte, por mais valor que esta tenha.
Admiro um quadro, uma imagem poética, uma fotografia, por si. Mas as obras artísticas também podem ser documentos históricos e como tal utilizados. Só que, se eu não souber o contexto que as informa, eu fico desinformado. Mas admito que o objectivo até seja esse. Quando a mim só lhes dou real valor se souber ir ao seu significado, que, às vezes, até extravasa a intenção do próprio criador.
Por isso se diz que é necessário ser culto para gostar de Arte. Se não a Arte é vista como um artificialismo, o que é um sinal evidente da maior ignorância. A Arte tem de ser vista com os sentidos, a inteligência a emoção e os sentimentos bem despertos. Se não, não se vê nada. E a Arte tem o privilégio de mostrar aquilo que nem o próprio criador tem intenção de revelar.
Por exemplo, quando se retrata uma figura típica num quadro, num roteiro, num poema ou numa simples foto, esse retrato é o espelho da sociedade que no retratado se revê, independentemente do retratista dar maior realce a um pormenor do seu aspecto. Por seu lado esse pormenor caracteriza mais o criador do que o criado, dá mais informação sobre o primeiro do que sobre o segundo.
Poderia aqui dar de barato que o exemplo é fraco e que o pitoresco teve o seu tempo também no domínio da Arte. Assim sendo, mais valeria considerá-lo como uma página virada na nossa História. Isso é feito pelos próprios artistas que a Arte está na sua História cheia de roturas, de saltos imprevistos.
Para mim, porém, todos os contributos e manifestações humanas, toda a barbárie e humanidade, toda a prepotência e humilhação, toda a sobranceria e generosidade, toda a ostentação e humildade, toda a lascívia e perversão, toda a festa e frustração, todas as intenções realizadas ou não, estando presentes na História do Homem, são as fontes da sua compreensão.
Na História nada se deita fora. Todo o auto de fé é um crime banido. A História tem de ter continuidade, ser perceptível e todos os documentos são importantes para isso. Se a Arte tem explosões é a História que lho permite, mas não se reduz a elas.
Na Arte procura-se uma nova identidade quando se dá a velha por perdida. Mas também se pode pretender reconstruir a identidade perdida. Isto pode dar origem a uma arte serôdia, fora do tempo que lhe foi próprio. Mas como a Arte se não vê só com inteligência, eu não pretendo fechar os olhos e dizer que se deva queimar. Historicamente sabe-se que a inteligência tem destas perversidades mas para que serve a evolução?
Utilizar na Arte modelos com um século de atraso, que já foram substituídos por outros, quando isso se insere na tal busca da identidade perdida é aceitável mas não pode ser imposto. E claro que diz muito do ambiente social e político que se viveu no negro miolo do século passado.
O facto de não rejeitar qualquer parcela do passado, por mais negro que pareça, não quer dizer que eu não o possa analisar friamente, tecer sobre ele as minhas considerações, e até abater sobre ele a minha virtual ira. Fraco passado que nos não deu a possibilidade de procurar uma identidade mais progressiva e uma Arte mais moderna.
Claro que tenho de recorrer de novo à inteligência para estabelecer a ligação entre a Arte, a História e a Política. A arte serôdia está sempre ligada a políticas retrógradas e obscurantistas. Quem afirmou que “Felizes aqueles que não sabem ler” andava cem anos atrasado na Arte, na Política e na Humanidade. Até nem sei para que escreveu, se não seria só para auto satisfação “condal”.

sexta-feira, 8 de dezembro de 2006

Crónicas de um tempo que é outro

Como já vem sendo habitual, demonstrativo do apreço que os seus leitores/espectadores vem manifestando pela obra de José Ernesto Costa, a apresentação de mais um número, o III, da sua “Crónica de um Outro Tempo” teve lugar na noite do dia 24 de Novembro, num Teatro Diogo Bernardes que os seus amigos encheram plenamente.
Não faltou uma forte presença institucional representada pelo Vice-Presidente da Câmara Municipal de Ponte de Lima, o Eng. Vítor Mendes e pelo Vereador da Cultura, o Filósofo Franklim Castro e Sousa. Não faltaram muitos Homens de Letras, como o poeta Cláudio Lima, que apresentou a obra.
Realcemos em especial que não faltou o povo anónimo, se nos é permitido dizê-lo, daquele que preferencialmente constitui o objecto das fotos por si recolhidas e das suas estórias, episódios da vida real, muitos dos quais até aqui só pertenciam à memória oral.
Aqui reside muito do seu mérito, na transcrição fidedigna, tanto fotográfica como escrita, do ambiente social, linguístico, dos aspectos lúdicos e preferencialmente alegres da existência. Que, como nos parece evidente, naqueles tempos só se utilizava a fotografia para retratar aspectos festivos e só se memorizava e recordavam aqueles episódios que davam muito mais colorido ao convívio de todos os dias.
José Ernesto Costa transmite-nos nestas Crónicas a vida no seu estado de pureza, tal qual era realmente “vivida”, os aspectos pessoais, familiares e de convívio, que raras são as fotografias ou referências a cerimónia oficiais ou intervenções do poder.
O pitoresco, a alacridade na qual os padres Laranjo e Passarinha têm um papel preponderante, não resultam do ridículo ou da má formação, antes constituam uma maneira natural e saudável de abordar a vida, que, por estar irremediavelmente perdida, pode parecer às gerações de hoje caricata e artificial.
José Ernesto Costa tem lutado por preservar este legado, apresentando-o numa contextualização familiar, coloquial, cúmplice, em que o agrado e a amizade que transmite em relação às suas “personagens” são uma imagem fiel daquilo que num outro tempo efectivamente se passava entre todos os de cá e os de lá da Ponte, sem artificialismos e distinções.
Haveria, claro, outras contextualizações para apresentar este espólio magnífico, mas será sempre possível a outros fazê-lo. Mas todos lamentarão que esta obra, constituída já por três volumes, vá ser agora suspensa, mesmo que temporariamente, segundo a intenção do autor.
Como soi dizer-se, as Crónicas de um Outro Tempo valem o que valem mas valem muito para a nossa identidade. Valem a pena, é imprescindível continuá-las.

O Aborto, a moralidade e a família

Muitas têm sido as razões invocadas para que historicamente a sociedade ocidental não seja favorável a uma interferência vinda do exterior no percurso normal da gestação de um filho após um acto sexual, qualquer que tenha sido a reacção da mulher à sua ocorrência.
Recentemente porém, quase genericamente, se entendeu que, tanto esta atitude da mulher perante o acto sexual, como uma má formação do feto, pudessem justificar uma intervenção que possa corrigir ou pôr fim àquele processo dentro dum limite temporal razoável de dez semanas.
Agora vamos ser chamados a dizer se o Estado deve ou não permitir que até esse mesmo limite temporal após o início da gestação, sejam dados à mulher plenos poderes para determinar o fim desse processo.
Se a acto sexual sob coação ou pela violência, normalmente designado de violação ou a constatação de que o feto está a ser sujeito a uma má formação congénita irreversível são razões determinantes para que actualmente a mulher já possa solicitar uma interrupção da gravidez, o que se pede agora é que se lhe faça a concessão de poderes absolutamente arbitrários.
Para justificar este alargamento da base legal para a interrupção voluntária da gravidez pode-se perguntar se há assim uma tal diferença de natureza entre o sexo sob coação e o sexo inconsciente, imprevisto, que mesmo consentido, não é avaliado nas suas possíveis consequências no momento da sua prática. Se não é legítimo que à mulher se possa atribuir um período de reflexão razoável.
Dir-se-á que ainda há o recurso à pílula do dia seguinte, mas mesmo esse período de vinte e quatro horas pode não ser suficiente para pôr os pés na terra. Por outro lado pode-se pôr a questão de um prazo ainda maior, que mesmo assim não vão deixar de haver mulheres arrependidas de ter dado um passo, voluntário ou não, no sentido da gravidez, principalmente com o parceiro então escolhido. Mas isso, levado ao limite, seria a barbárie, que quase tudo justificaria.
Não haverá dúvidas que há situações complexas em que qualquer mulher, mas em especial a mais imatura, só depois de grávida, depois de estar perante um facto, doutro modo irreversível, pensará em todas as consequências do seu acto. A mulher pode entender, enfim, que não tem condições para criar um filho, que possivelmente lhe vai alterar radicalmente a vida ou exigir-lhe encargos que não se sente de nenhum modo capaz de assumir.
Claro que as mulheres em condições de poderem vir a deparar com este problema serão em número limitado e serão especialmente jovens e somos todos chamados a aceitar ou não que elas possam resolver o seu problema desta maneira. Legalmente não há aqui qualquer problema porque assim é desde que instituímos o Estado como regulamentador de muita da vida social.
Visto de fora, isolado, sem ter em conta antecedentes e suas consequências, o aborto é um acto impróprio mas também não pode deixar de ser visto como uma manifestação do nosso carácter impuro, imperfeito e que até admite alguma perversidade. É, como muitos outros, que outros até louvam, como a guerra, os maus-tratos, etc., um acto identificador da nossa indignidade.
O aborto livre é só mais um aspecto em que o homem, por se sentir senhor da natureza, capaz de a alterar e subverter, está a apostar no sentido de elevar o seu hedonismo a outros cumes, não antes vistos, e eliminar todos os possíveis resquícios do simples hedonismo primário que sempre o caracterizou.
O aborto livre, só por si, será sempre uma condenação porque será praticado pelas mulheres mais frágeis, mais indefesas, mais vulneráveis. Será como um direito envenenado entregue por compensação aos mais fracos. Não é daqueles direitos que dão a quem os pratica mais força e dignidade.
Nós podemos ainda facilmente acrescentar a esta auto-condenação uma condenação moral, se é que a moralidade é para aqui chamada e se é que da moralidade temos todos a mesma noção. Podemos fazer um esforço nesse sentido, de encontrar uma moralidade que satisfaça o maior número, que para mais fácil compreensão seja definida parametricamente e cujos parâmetros sejam os mais partilhados.
Só que aqui surge um problema que é o de saber se essa moralidade está certificada por processos que terão ocorrido no domínio próprio de acção daqueles que os dizem partilhar. Porque a moralidade proclamada, quando é posta à prova, quebranta e é muitas vezes posta de lado. Felizmente que neste âmbito a moralidade não é posta à prova todos os dias e em todas as pessoas mas é um sinal de bom senso e de humildade moral não deitar a primeira pedra.
Assim podemos e devemos condenar moralmente o aborto, mas de modo não radical, e ser tolerante sem ser moralmente permissivo. À mulher restará sempre a liberdade de achar ou não que essa moralidade se enquadra na sua perspectiva de vida. Hoje já ninguém é segregado e condenado até à eternidade.
O que não restarão dúvidas é que cabe ao Estado fazer leis tolerantes mas também difundir valores como a defesa das relações prolongadas, da criação conjunta de filhos, da responsabilização mútua na construção de um futuro estável. E todos devemos pugnar por isso por uma questão de racionalidade e sem falsos moralismos, que só confundem a questão.
Ao Estado cabe defender o património civilizacional que nos enobrece, que nos valoriza perante outras civilizações, que enunciam certos princípios muito rígidos mas permitem e encobrem práticas de desigualdade e atentatórias da dignidade humana. A nossa superioridade passa pela luta aos fundamentalismos.
Podemos atribuir à família um papel fundamental neste contexto. Designando como família aquele sólido mas livre núcleo central em que podem continuar a ser defendidos os valores civilizacionais que um percurso histórico comum mas variado nos conduziu. A família entendida como a base da sociedade. Se o aborto poder contribuir para a defesa da família, não deve ser pois penalizado pelo Estado. E só a mulher, cada mulher por si, pode determinar se fazer ou não fazer aborto é uma forma de tornar viável a sua família. E aqui só esta interessa por ela ser tida em atenção.

terça-feira, 5 de dezembro de 2006

Os presentes de Natal de antanho - (Conto)

Pedro via a vida deslizar suavemente naquela candura que a idade lhe dava. Não havia então estes jardins-de-infância fantasistas, as pré-primárias coloridas ou outros luxos a que nós, adultos e crianças de agora estamos bem habituados e já consideramos um direito adquirido.
O Pedro tinha por local privilegiado de brincadeira a horta, que as favas eram semeadas cedo e já eram um bom esconderijo para brincar às escondidinhas. Os carreiros eram bons para uma correria mas a bicicleta do pai era demasiado grande para ele.
Que bom seria um triciclo, mas só tinha visto um, que se lembrasse. Os mais velhitos também só tinham para as suas brincadeiras uma vara com uma roda e um pau atravessado a servir de guiador e corriam atrás dela. Mas também era grande para si, o guiador estava muito alto e já tinha caído com uma.
Além disso tais liberdades não eram para si, que o quintal era o seu mundo. Salvo quando a mãe o levava à mercearia, para juntos não deixarem o caminho vazio, dizia-se. Os mais velhos lá iam jogando à bola no improvisado campo, que até ficava próximo da sua casa, mas que só via nestas ocasiões.
Também gostava de dar uns pontapés na bola e já as tinha visto de todas as formas e feitios, que não só redondas. Eram maiores quantos mais trapos se arranjavam para meter dentro de uma meia que se atava. A sua irmã tinha-lhe feito uma certa vez que era redondinha mas porque ela a coseu muito bem.
As bolas andavam rotinhas até se desfazerem sem conserto, que os mais eram tripas a sair delas, que sempre que a bola parava tinha que se lhe meter os trapos para dentro. Os mais sortudos lá apareciam, por festas, com uma bola de borracha mas, com tanta chanca que lhe acertava, depressa furava. Mesmo assim, murcha que nem um figo seco, lá ia rebolando como podia até ser golpeada de vez.
Poderá ser que no Natal a sorte venha a bafejar algum, mas, mesmo assim, a bola, se couber a um mais cioso do que é seu, lá terá que ficar de quarentena. Mais lá para a frente, quando passar a época do frio e da chuva, já se poderá jogar descalço e ela sempre durará mais um bocado.
O Pedro, esse, tinha de se contentar com alguma bola de trapos que chutada por algum mais maduro viesse a cair no quintal. De certo já deitaria as tripas de fora se é que não se preocupassem em a pedir de volta. Com um fio ou corda atada à volta refazia-se a bola. Que trapos e meias eram difíceis de arranjar.
Este era o tempo de muitas brincadeiras que o Inverno proporcionava mas de que os pais gostavam menos. A roupa era pouca e não se podia molhar sem razão. As botas, se ainda assim se podiam chamar, ou as chancas de sola de madeira, não isolavam a água mas vá, que para o frio lá iam chegando.
Num mundo sem televisão, algo inconcebível para os miúdos que hoje têm a idade do Pedro, este andava um pouco à deriva. Não tinha muito com quem brincar, que poucas são as suas visitas, não foram os vizinhos da separadora, a fábrica do minério que via de casa mas onde só tinha ido uma vez com o pai.
O Pedro, já o disse, tinha irmãos mas que lhe pareciam como outros pais, tão velhos eles eram à sua beira. Sabia que a escola já havia começado há muito para eles e que até já falavam por vezes de férias. Um dia eles estavam em casa quando se levantou e ele achou estranho, já seriam as tais férias.
Um dia os irmãos levaram-no com eles ao monte lá para os lados de S. Gonçalo. Trouxeram muito musgo que tiravam das pedras ou do chão mais macio e disseram que iam fazer um presépio, que a mãe lhes trouxera da feira umas ovelhinhas, uma vaquinha, um burrico, uma mulher, um homem e três camelos com passageiros em cima. Tudo se ia pôr à volta ou dentro de uma gruta onde um menino, o Menino iria dormir numa manjedoira.
Depois os irmãos foram a um outro lado buscar um pinheirinho mas não o levaram. Era longe e tinham que subir um monte alto, disseram. O Pedro até gostava bem mais do pinheiro, que vira um no merceeiro com umas pratas com chocolate dentro e que alguém o havia de comer.
A mãe disse-lhe que ia ser Natal e que vinham as suas duas irmãs. Uma era a sua madrinha Casimira, que vivia no Porto. Talvez ela ajudasse a decorar o pinheirinho com chocolates, pensou. Quando enfim chegou foi preciso ir buscá-la à camioneta do Romão que ela andava mal e nesse dia até jantamos mais tarde.
Perguntou ao Pedro o que ele tinha pedido ao Pai Natal mas ele nem sabia quem era, não estava preparado para isso. Ela disse-lhe que então pedisse ao Menino. Quando pôde pensar lembrou-se que a madrinha sabia fazer uma camisola de lã e como seria bom, mas não disse nada, ela nada tinha trazido.
Talvez ela já tenha feito o pedido, que agora o Pai Natal, se era esse, já não teria tempo para responder, tão afadigado que andaria. Se o Menino queria que os outros meninos andassem bem agasalhados, deveria dar ou mandar esse tal de Pai Natal dar uma camisola a cada um.
O Pai Natal seria então uma espécie de carteiro somente, não era ele que mandava nem sequer era ele que fazia as encomendas. O Menino é que tinha a bondade e o trabalho era dos artesãos, como sempre foi.
O Pedro até pensou que, se assim era, até poderia ter pedido ao Menino alguma coisa em ferro, que este o mandaria fazer ao seu pai, que este andava a dizer que tinha pouco trabalho na sua arte e o dinheiro era pouco em casa. Só que a madrinha insistiu e ele já se não lembrava de nada, nem da camisola de lã.
O Pedro ficou triste, duma tristeza imensa que se não podia ver naquela cara, sem expectativas, que é aquilo que dão aos meninos para eles terem aquele ar embevecido quando recebem os presentes.
Logo se veria, que naquela noite não era ainda a do Menino. Quando deu por ela, no dia seguinte, já havia umas cabaças cortadas em cima da mesa. A mãe chamava-lhes chilas, àquelas verdes de pintas brancas que nasciam penduradas na vinha e a umas, que eram tão amarelinhas por dentro, de abóboras meninas.
O Pedro só reparou que à noite havia umas sacas de pano penduradas que tinham dentro tais cabaças cosidas e que estavam a escorrer água para a dala. Como assim não davam para se comer é porque ainda não era o Natal. No almoço do dia seguinte comeu-se arroz de polvo e a mãe do Pedro disse que à noite seria bacalhau. Então o Pedro soube que, enfim, era a noite de Natal.
Lá apareceu uma bacia de barro com água e bacalhau e um feixe de troços que a mãe do Pedro recebeu duma vizinha. Já a tarde ia adiantada e o fogão, que não tinha deixado de ter lenha a arder, foi espevitado para fritar os bolinhos de chila e de abóbora menina e as rabanadas que a irmã do Pedro lavava em leite quente com canela e em ovos mexidos.
Já quando o bacalhau e as couves coziam, a mãe do Pedro lembrou-se de umas pinhas mansas que tinha guardadas e pô-las no fogão. Então o Pedro teve a certeza que era Natal, tal o forte cheiro a resina que delas saía. Comeu-se com azeite duma tigela e as couves bem regadas.
Tiraram-se os pinhões, lavaram-se em água e secaram-se com um pano. A cada um foi dado um punhado de pinhões e todos se puseram a jogar o rapa, o Pedro também. Era assim como que um pião pequeno que se fazia rodopiar com os dedos e que tanto rapava, como tirava, deixava ou ponha pinhões.
Iam-se comendo uns bolinhos e umas rabanadas com canela e os mais velhos lá beberam um cálice de vinho de uma garrafa que o merceeiro mandara, já era noite. Era doce, diziam, tinha vindo do Porto, mas o Pedro não o provou. O jogo durava já há muito e o Pedro tinha era sono e até já estava sem pinhões.
Queriam pô-lo na cama mas a madrinha ainda lhe lembrou que tinha que pôr um sapato na chaminé, que era lá que o tal Pai Natal que vinha pela chaminé ponha os presentes que o Menino mandava. O Pedro não percebeu bem mas já não interessava. A irmã tirou-lhes as botas e pô-las em cima do fogão e de uns tijolos, que ele ainda estava quente.
Ele ainda espreitou pelo canto de um olho e perguntaram-lhe se queria que o acordassem depois da meia-noite para ver as botas. Só que ele já nada ouviu, as cortinas correram-se, ele estava a dormir.
De manhã, sabe-se lá porquê, o Pedro acordou cedo, mas não ouviu barulho em casa. Todos se tinham deitado tarde a jogar os pinhões e a mãe tinha dito que à meia-noite ainda havia de fazer uns formigos e umas sopas de mel e vinho quente.
O Pedro levantou-se e foi à chaminé, que havia uma gateira que dava alguma claridade, e viu um embrulho em cima das suas botas. Lembrou-se que no último Natal tinha tido um presente: um par de meias embrulhado num pequeno volume. Agora talvez fosse a tal camisola.
Rasgou o papel e abriu uma caixa: foi uma desilusão, não sabia o que aquilo era. Parecia uma raquete com três pintainhos em cima e uns fios que passavam em buracos e estavam presos em baixo a uma mesma pequena bola de madeira.
Pegou naquilo, admirado, e agarrou o cabo com a mão. Verificou então que, mexendo com o aparelho, os passarinhos depenicavam no chão, tique, tique, tique… Se pegasse no cabo e andasse com a raquete um pouco em volta ora penicava um, ora penicava outro e assim sucessivamente...
Era lindo. Foi o melhor presente que o Pedro recebeu em toda a sua vida.

sexta-feira, 1 de dezembro de 2006

O ensino, uma falência anunciada

É conhecida a falência do sistema de ensino que não fornece ao País os técnicos em quantidade e qualidade que todos reclamam. É sabido que as actividades económicas progridem à revelia do ensino, que este se vê impossibilitado de as acompanhar.
Numa sociedade em que a competição foi alcandorada ao ponto mais alto, como factor capaz de elevar os níveis de todos os parâmetros com que se pode medir o seu sucesso, o ensino não corresponde, antes parece ser a causa principal de tanto ineficiência.
Existe no sistema de ensino um outro sistema paralelo e incrustado naquele, uma malha de interesses que se complementam, que torpedeiam qualquer reforma consistente, qualquer melhoria, qualquer inovação. É um sistema de tal modo entrançado no que devia ser o sistema público oficial que o estrangula.
Não é por falta de dinheiro, nem de empenho de alguns bem intencionados que os tem havido em todos os governos, antes por os sucessivos governos se terem deixado levar por cantos de sereia e terem metido tanto dinheiro num sistema que só tem servido para alimentar parasitismo.
Têm-se confiado na boa vontade de estruturas sindicais, directa ou indirectamente elevadas à categoria de gestoras do sistema, dos professores isolados ou manietados por aquelas estruturas, de outros intervenientes internos e externos com interesses específicos na área. Tudo com uma certa inocência útil.
A displicência instalada nos serviços de Estado directamente relacionados com o ensino, na poderosa máquina do Estado que superintende, inquinada pelo imobilismo, pela chantagem, pela sabotagem, contaminada por tudo que são interesses adversos, faz do ensino público um arremedo de prática pedagógica.
A política do ensino generalista instalada pós 25 de Abril, imposta por uma visão do mundo hoje já decrépita e moribunda, que com o fito de criar igualdade entre os alunos, acabou por dar origem às mais injustas desigualdades ao pôr todos a aprenderem tudo para que o ensino só tenha sentido para quem chega ao seu topo. Quem vai ficando de fora é um segregado do sistema.
A entrada no sistema de ensino de gente não preparada para tal agravou as deficiências já herdadas do antigo regime. Claro que havia que alargar o ensino a nova camadas da população e democratizar o acesso a novas profissões e, se não havia professores para tal, tinha que se recorrer ao que havia.
A criação de emprego no ensino além do mais fez-se em detrimento de outros possíveis empregadores estes sim penalizados pela situação. O sistema de ensino esteve muitos anos canalizado para a sua própria reprodução. A anarquia e o desleixo reinantes foram-se solidificando.
Criou-se a negligência do lado dos professores porque os seus alunos, como não iam no fim do curso para o mundo do trabalho, não tinham que se sujeitar à aferição da qualidade do seu ensino. Criou-se nos alunos a ideia de que teriam sempre um lugar de professor à sua espera, sem se preocuparem muito com isso.
Além de se ter criado a realidade de que qualquer um podia ser professor, permitiu-se a acumulação com outras actividades mais rentáveis, mais trabalhosas, ocupando o essencial do tempo de trabalho das pessoas. O ensino ficou para essas como uma actividade secundária, que cada vez menos tempo ocupava, mas que se não abandonava porque é bem paga e dará um dia uma choruda reforma.
Ainda há um conluio real mas não assumido entre políticos, mulheres dos políticos, estruturas sindicais, professores dispensados total ou parcialmente de o ser, professores passados a políticos ou sindicalistas a tempo inteiro, professores sem sentido ético, “compagnons de route” anestesiados que enviam para a sociedade ideias peregrinas de que o futuro está nas suas mãos e sem eles não há saída possível. Chantageiam com o máximo descaramento.
Os alunos nada sabem do futuro, andam à sua procura e nisso são orientados por gente sem escrúpulos que pintam cenários em que eles próprios são os bons da fita e o resto são monstros cínicos e alguns antropófagos.
Os alunos, desprevenidos, facilmente entram na malha previamente montada porque os pais também não estão preparados para afastar esses fantasmas e estão em muito arredados do contexto e da cultura reinante nas escolas e em que os seus filhos se movem quase exclusivamente durante o dia, uma cultura de relaxamento, de displicência, de desenrasque.
Os ricos metem os filhos nas escolas privadas na fase obrigatória e secundária e nas universidades públicas na fase superior. Os pobres mandam os seus filhos para as escolas públicas na fase do ensino obrigatório e secundário e, se podem, para as universidades privadas, que se arrastam sem glória.
As universidades públicas mantêm ainda uma certa qualidade ao contrário das privadas que querem ter bons resultados mas não investem, socorrem-se de professores que trabalham por baixo preço, herdam todos os males do sistema de ensino secundário público. Os ricos contornam facilmente essas dificuldades.
São mais os pobres que dão razão aos seus filhos no seu permanente conflito com tudo e em que confundem exigência e valorização com descriminação e arbitrariedade. Na impossibilidade de dar uma orientação meritória aos filhos neste mundo deliberadamente confuso, claudicam com os seus argumentos.
O objectivo mais ambicioso é ultrapassar etapas e chegar depressa ao ambicionado canudo, malgrado às vezes só sirva para encaixar e pendurar na parede. Agora que a realidade se vai distanciando cada vez mais das pessoas e mais difícil é de perceber, é sempre bom ter um doutor em casa.
Se se não criar uma opinião pública esclarecida, que não seja monopolizada por aqueles que, directa ou indirectamente, tenham interesses no sistema de ensino vigente, temos um futuro negro à frente, que os empregadores não estão dispostos a investir demasiado na formação dos seus empregados.