terça-feira, 30 de maio de 2006

Da indignação à humildade

As manifestações de indignação estão por demais legitimadas pela opinião pública e pela opinião publicada para que lhes possamos atribuir por isso um estatuto de menoridade.
O Sr. Fernando Pereira, laborioso e dedicado Director deste Jornal (dispensar-me-á de lhe atribuir mais atributos que com certeza tem) manifestou essa indignação a propósito de que se dizia do Hospital Conde de Bertiandos e da forma que a sua liberdade de pensar e escrever lhe permite.
Por meu lado sou um livre-pensador que entendi ter uma intervenção dita política na medida em que de política sempre ”bebi” quase desde que me conheço, alinhando no que havia para alinhar, fazendo travessias do deserto, olhando o mundo e procurando captar a sua sabedoria com as armas do conhecimento de que me fui munindo.
Mas o que para aqui interessa é o presente. Aqui estou eu, na minha modéstia, também empenhado em desmontar, para já a nível da Assembleia Municipal, a “polémica necessidade de encerrar o” dito “Hospital Distrital de Ponte de Lima”
Para mim “culpa” não me pode ser atribuída. A culpa que tenho e aceito é a de querer viver em democracia e de não levantar processos de intenção. Afinal acho que nenhum de nós quer contribuir com o que quer que seja para acabar com a democracia, nem para atribuir culpas a quem não as tem.
O que eu, com sinceridade, não posso dizer é que não haja por aí, quase diria por todo o lado, gente empenhada em gerir processos de intenção. Pessoas pródigas em arranjar culpados, por tudo e por nada não faltam. Mas, à frente que aí vem gente.
Uma coisa que não faço, à certa, é proferir sentenças. As minhas frases são achegas para uma interpretação “sólida” dos acontecimentos, que tenha na devida conta a realidade objectiva, sempre difícil de atingir e interpretar.
Modestamente pretendo contribuir para a formação de alguma “massa crítica” de intelectuais desalinhados, mas não parados. Neste aspecto os partidos são um “mal menor” mas democraticamente necessário. Haverá outras formas de participação, mas direi, para já, delas que algumas, sendo importantes, no geral não fazem o meu estilo.
Mas neste universo quanto é custoso ser pequeno, num concelho pequeno, numa região pequena, num país pequeno, numa Europa vulnerável a ventos e contra ventos, num mundo em permanente ebulição.
A actuação de todos nós, daqueles que têm e dos que não têm a pachorra de ler estas linhas, é irrelevante neste universo “pesado”. Mas, como humanos que somos, há uma força que nos move e não nos deixa estar parados à sombra da bananeira.
Nem toda esta força será sadia, como sabemos, mas dos políticos, digo eu, muitos há neste país que, derrota atrás de derrota, persistem em aparecer a encher as nossas televisões de tristes figuras. Não será doentio aconselhá-los a dedicarem a sua força a outra vida.
O nosso desejo era que tudo fosse claro e luminoso. Que não houvesse quem utilizasse os partidos políticos como cobertores, agasalhos ou simples capas de interesses ilegitimamente defendidos. Que não houvesse partidos que utilizassem tachos, vantagens, favores para conquistarem apoiantes.
Mas não é de todo possível dissociar o homem político do homem económico, que tem necessidades e desejos a satisfazer. Possível é tornar claro o que é uso de influências, o que é tráfico de influências, o que é compra de influências, o que são vantagens injustas e indevidas, o que são vantagens compradas via persuasão, via aliciamento ou via corrupção.
Ao homem dispenso a minha máxima condescendência que, espero, recíproca. Ao político, onde o houver há que ser duro e implacável, sem ser acintoso ou ressentido. Ao opinante direi que nem tudo verei pela sua perspectiva mas acho que deveríamos ter sempre presente que “há razões que a razão desconhece”.
Deveríamos ter a humildade de aceitarmos que podemos estar a não ver bem o problema. Mas para além disto há uma verdade insofismável: estes assuntos da política são, por vezes, de uma insalubridade tal que, sem alguma pimenta, dificilmente são digeríveis.
Também era importante que não fosse só para nosso eventual gozo. O pior que há para nós é falar em circuito fechado. Que a imprensa vá fazendo o seu papel.

terça-feira, 23 de maio de 2006

Nem toda a doença é caso de urgência

O actual governo, resultado da vitória eleitoral atribuída democraticamente ao P.S., é o governo de Portugal e, como é exigível a todos, adequa as suas próprias ideias às condições objectivas existentes, procurando com racionalidade utilizar os meios disponíveis para o progresso do país.
Isto já foi percebido pela maioria do país, salvo por alguns puristas impenitentes. Algumas mentes mais iluminadas pensarão que era possível fazer muito melhor do que está a ser feito. Claro que estarão no seu direito. Mas era bom que, para além de afirmações puramente gratuitas, se propusesse soluções para que todas as pessoas as entendam.
Não só o Governo vai tomando atitudes que nos afectam e devemos reagir, como devemos pugnar, porque é imperioso, para que sejamos motivo de uma atenção acrescida, dado o nosso atraso. Os eleitos socialistas, nos quais com gosto me incluo, estarão sempre receptivos a qualquer esclarecimento adicional às posições que nos vários órgãos autárquicos vamos assumindo.
Preocupantemente, parece que na moda estão as entrevistas indirectas. Neste sentido direi que o “burocrático” Serviço de Atendimento Permanente deve permanecer como está enquanto se não alcançar melhor “serviço de urgência” como, aliás, só por ironia o serviço existente pode ser apelidado.
As “valências”do hospital devem ser “recuperadas”, isto é, devem existir em Ponte de Lima as valências para as quais se consigam técnicos e clínicos especializados e, caso contrário, devem existir, sempre que o número de utentes o justifique, consultas externas como extensão das verdadeiras valências existentes nos hospitais de Viana do Castelo, Braga ou Porto.
Os habitantes da Boalhosa ou da Labruja, amanhã, como hoje e como já ontem, vão ter que se deslocar a Viana do Castelo, Braga ou Porto para receber o tratamento diferenciado de que necessitarem e ficarão em Ponte de Lima para os cuidados intermédios que não necessitarem de assistência médica especializada.
Em relação aos Centros Escolares as nossas divergências com a política adoptadas pelo executivo camarário, constando nesta fase de implantação de alguns aspectos práticos e de casos específicos, têm essencialmente por base a falta de diálogo e de esclarecimento. Se alguém tem medo de não conseguir a adesão das populações para este projecto não somos nós.
Não havendo diferenças significativas entre as três principais forças políticas concelhias, pugnamos pela clareza, por soluções equitativas e justas, tomadas em devido tempo, não casuisticamente mas programadamente.
Nós queremos um parque desportivo na zona urbana mas também estruturas desportivas dispersas, bem localizadas e equipadas com meios e pessoal de apoio, de modo a atrair a juventude.
O bem público será o motivo da nossa luta, contínua e sem desfalecimento, mas conforme o nosso entendimento e os novos conhecimentos adquiridos. Como “políticos” cabe-nos lutar pelo esclarecimento, pela participação e para que aos eleitores sejam dadas opções claras, o que se reconhece, não tem sido infelizmente uma prática generalizada.
À imprensa cabe, na nossa perspectiva, colaborar neste desiderato sem propósitos opostos aos que a ética jornalística exige. Porque o trabalho não é pouco e além de muita ruralidade, teremos que retirar de muitas mentes muitíssimas nuvens negras.
Há uma verdade que deve ser realçada: Se a população se pode queixar da falta de esclarecimento, a imprensa não. Tem todos os meios ao seu dispor para obter toda a informação e para, no caso de ela lhe ser sonegada, dar público conhecimento dessa atitude. Quem assim não procede só tem um nome: capcioso.

sexta-feira, 19 de maio de 2006

Uma rede escolar dispersa mas abrangente

Tanto quanto é possível perscrutar num futuro que permanentemente nos foge, porque cada vez mais exigente, as necessidades quanto à preparação da presente geração para esse futuro passam por uma reestruturação profunda da rede escolar e duma melhoria substancial dos meios humanos e materiais colocados à disposição desse objectivo.
Havendo um largo consenso quanto aos objectivos e um grande esforço por parte do governo no que concerne aos meios, nem tudo está ainda claro, em particular nos aspectos em relação aos quais, segundo a lei, cabe uma grande intervenção por parte do poder autárquico.
Destacam-se destes aspectos aqueles que entram em colisão com o que já está feito do antecedente e em particular a questão da rede escolar do 1º. Ciclo do Ensino Básico.
É sabido que as escolas do ensino dito primário têm sido à volta de sessenta no concelho de Ponte de Lima, o que corresponde a mais de uma por freguesia, tendo mesmo algumas freguesias já tido quatro escolas em funcionamento.
Se esta situação se entendia quando o transporte era um problema quase insolúvel e as professoras tinham que ser autenticamente desterradas para locais isolados por longos períodos para facilitar a vida aos alunos e à sua família, hoje os inconvenientes desta dispersão exagerada das escolas são particularmente graves.
Além disto os modos de vida alteraram-se radicalmente e a maneira de encarar o ensino também é diferente. Em tempos a escola era vista como um complemento de outras formas de educação e o tempo que se lhe dedicava era minimizado de modo a ocupar as crianças noutras actividades. Consideravam-se a família e o trabalho como as melhores formas de socialização.
Hoje, embora hajam problemas nas escolas, só elas podem garantir a socialização e a aprendizagem que podem alicerçar o futuro. A família já tem mais dificuldade de acompanhar o ensino ou a utilização do tempo pelos seus filhos. O trabalho é relegado para depois dos dezoito anos e cada vez mais se pretende para depois dos vinte e tantos anos.
A escola que nos lugares mais atrasados era vista como um estorvo é agora genericamente vista como a primeira exigência que o Estado tem de satisfazer. Para as famílias a responsabilidade é cada vez maior e foge-se a ela tendo cada vez menos filhos.
As famílias querem agora que as escolas tenham sucesso porque delas depende o sucesso dos filhos. Cabe também às famílias serem ela a ajudar a escola mais do que ser a escola a ajudar as famílias.
Mas as famílias pretendem que os seus filhos estejam o mais próximo possível, enquanto podem. E há uma manifesta vantagem em assegurar uma forte e consolidada ligação das crianças à sua terra e à sua família. Efectivamente, existem interesses a conjugar.
As escolas tipo plano centenário, como outrora se chamavam, sem terreno sequer para um recreio digno, sem parque desportivo, encravadas no meio da população ou dos pinhais, estão ultrapassadas e só em poucos casos poderão ser reaproveitadas. A grande maioria das escolas do nosso concelho estão longe dos requisitos mínimos a atingir.
Preconiza-se, em relação ao 1º. Ciclo do ensino básico que cada escola não obrigue a mais de 40 minutos de transporte diário, que abranja um mínimo de 2000 habitantes e 80 alunos repartidos por 4 turmas, para além de mais características do equipamento e mínimos de terreno a englobar. Claro que os mínimos podem quadruplicar se a densidade populacional o justificar.
Estes são só alguns dos pressupostos orientadores para uma solução equilibrada e justa. Ora no concelho de Ponte de Lima existem 57 escolas para 2108 alunos o que dá uma média de 37 alunos por escola. Pelos parâmetros actuais não pode haver nestas escolas um ensino de qualidade.
Só as dez maiores teriam dimensão em alunos para continuar e não me estou a referir à qualidade do equipamento. São as escolas de Correlhã, Vitorino das Donas, Vilar e Freiria em Arcozelo, Tourão em Refoios, Ponte de Lima, Rebordões Souto, Ribeira, Barreiras em Freixo e Vitorino de Piães.
Algumas destas poderão eventualmente permanecer mas haveria que as redimensionar e reequipar devidamente. A maioria haveria que as deslocar para terrenos mais abertos.
Não se poderá evidentemente partir do zero. Também se não pode aceitar que, só porque está bem situada, uma escola tenha que ficar. Mas se três daquelas escolas têm mais de 100 alunos não deveriam ser significativamente deslocadas.
Também as outras, se redimensionadas, poderiam servir de base a escolas que absorvessem bastantes mais alunos do que os que têm. Mas mesmo assim seriam necessárias mais sete ou oito para construir a rede mínima exigível e a dispersão indispensável.
Para o oeste da linha Formigoso, Antelas, S. Ovídio (203 alunos) proporíamos mais duas escolas: um na zona Sá/Moreira e outra na zona Fontão/Arcos. Para nascente daquela mesma linha (414 alunos), além das três referidas, teríamos mais uma escola em Cepões/Calheiros perto do eixo constituído pela estrada da Travanca.
Na Gemieira/Gandra (133 alunos) teríamos 1 escola. No Vale do Neiva englobando Anais (464 alunos) teríamos, além das duas escolas referidas, uma outra na zona Anais/Calvelo e outra em Cabaços.
Faltariam também duas escolas para o Vale do Trovela (239 alunos), uma das quais já está em construção na Feitosa e outra em projecto para Fornelos.
É necessário dar um incentivo às freguesias periféricas do concelho de Ponte de Lima e às pessoas para que, mesmo que se desloquem pendularmente, deixem os seus filhos na Escola mais próxima da residência.
Criar escolas na periferia é desenvolver o concelho e descentralizar as estruturas necessárias ao desenvolvimento urbano dessas regiões.

terça-feira, 16 de maio de 2006

A saúde não pode ser moeda de troca

A nossa máxima aplicada ao sistema de saúde em Ponte de Lima tem sido deixá-lo ir caindo de “podre” e só então gritar “Aqui d’el Rei”. Nem sempre nos surge a consciência das deficientes condições instrumentais e humanas em que vão sendo prestados os serviços de saúde. Mas é bom que tomemos conhecimento delas.
È bom nós reivindicarmos mais e melhor e temos tanto a reivindicar. Não podemos é iludirmo-nos e fazer finca-pé na defesa daquilo que não temos. Independentemente daquilo que temos, temos que exigir a posse e a partilha daquilo que nos é devido.
O governo procura sistematizar princípios e soluções de modo a, com as disponibilidades existentes, tornar os cuidados de saúde condizentes com as exigências de hoje. Isto não está ainda feito, mas há muito tempo o deveria estar.
O governo terá que definir, com a ajuda dos técnicos mais avalizados, quais os parâmetros a se aplicarem por serem os mais adequados à actual fase de conhecimento e às necessidades sentidas pelas populações.
Mas não há verdades absolutas e nós poderemos sempre pôr em causa os princípios que o governo venha a defender. Principalmente se esses princípios levarem ao atrofiamento da rede de cuidados de saúde.
Não é de qualquer maneira que nós vamos acreditar que tudo melhora com o fortalecimento duma rede menos vasta. A centralização nem sempre é sinónimo de melhoria. Se os nós da rede são fracos e se nada se fizer para darem melhor resposta só pioramos as coisas.
O nosso hospital já teve nomes pomposos, quadros com algum significado, mas nunca conseguiu prestar um serviço que satisfizesse a população. Se houve falta de investimento em equipamentos e edifícios, houve também falta de pessoal médico e técnico que quisesse cá trabalhar.
Mas o passado não nos alivia as dores do futuro. Nós queremos que o Estado tenha uma forte intervenção na prestação dos cuidados de saúde. Nós não queremos que tudo seja privatizado. Nem sequer queremos que o fundamental seja entregue à responsabilidade de qualquer instituição particular.
Nós queremos que o lobby da saúde participe e contribua de modo positivo para a solução dos nossos problemas nesta área. Os médicos do Centro de Saúde já há mais de um ano se demitiram de prestar serviço na dita “urgência” de Ponte de Lima. Agora é necessário que assumam as suas responsabilidades.
Nós queremos um serviço de verdadeira “urgência” prestado no hospital ou através de um veículo de emergência devidamente dotado de meios.
Ponte de Lima nunca teve uma equipa cirúrgica residente e não é agora que a podemos reivindicar. Ponte de Lima só fugazmente vai tendo algumas consultas de especialidade nos serviços públicos mas temos de exigir mais e melhor.
Ponte de Lima pode e deve reivindicar os meios de diagnóstico necessários às situações de emergência de que a radiologia é apenas um. Nós devemos reivindicar que esses meios estejam ao dispor de todos os serviços públicos de saúde durante todo o tempo do seu funcionamento.
Ponte de Lima precisa de uma assistência médica com horário alargado e ao fim de semana, chamam-lhe o que lhe quiserem chamar, para satisfazer as situações que, podendo não ter essa designação oficial, são para as pessoas normais, de carne e osso, de urgência.
Ponte de Lima tem de ter a garantia de assistência de emergência em casa, na estrada, ou em qualquer outro local durante 24 horas por dia porque infelizmente há doenças súbitas e acidentes a qualquer hora.
Ponte de Lima tem de estar unida nestes propósitos chamando todos os intervenientes à participação, mas tem de haver alguém que, além da definição dos objectivos, coordene os esforços que há a fazer.
A Assembleia Municipal de Ponte de Lima foi chamada a essa função e a imprensa não pode estar alheia. Por isso o meu contributo.

sexta-feira, 5 de maio de 2006

Sarrabulho, o manjar dos Deuses

1º. Dia – a matança

Do porco, suíno de espécie e bácoro de nascença, aproveita-se quase tudo. O sarrabulho ou sarrabulhada, se entendermos este vocábulo mais apropriado para designarmos este manjar digno dos Deuses, é como um teste ao sabor do dito.
O porco, porque se conservava com facilidade salgado, era, antes da invenção e divulgação da arca frigorífica, a dispensa do lavrador. Para adubar as batatas e couves, ia-se à salgadeira buscar um bocado de toucinho, um osso da costela ou ao fumeiro tirar uma chouriça, que o presunto era para mais tarde, para a Páscoa ou para a festa da aldeia.
Mas todo o lavrador que se prezava, antes de guardar estas economias, convidava os seus amigos para aquela tal sarrabulhada, da qual só sairiam quando estivessem tão satisfeitos como os amigos abades.
Mas alguns amigos leigos tinham que, no dia anterior, ajudar à matança. Tirado o porco do chiqueiro, prendíamo-lo por uma boa corda, estendia-se ao longo de um carro de vacas, no qual já se tinha um só fueiro, e enrolava-se a corda à sua volta para segurar bem o animal. E nós lá estávamos.
Espetada a faca apropriada no lugar devido, de modo a atingir ao de leve o coração, o sangue espicha abundantemente e apanha-se em alguidares de barro.
Algum do sangue vai para um alguidar onde coalhará pois se destina a fazer o chamado verde. O restante é recolhido num outro alguidar em que antecipadamente se pôs algum vinho tinto ou vinagre, sendo sempre mexido ao cair para precisamente não coalhar.
Morto o dito, pega-se num feixe de colmo ou carqueja, pega-se-lhe fogo e, com a extremidade a arder, há que lhe dar uma boa esfrega, que ele se é bom é sem pêlo e bem tostadinho.
Lava-se depois com sabão e raspa-se com pedaços de telha, mesmo de pedra ou facas mal afiadas para se lhe tirar da pele, das orelhas e dos pezunhos as impurezas que possam ter ficado.
Então todo o couro do porco é devidamente passado com uma salmoura de bom vinho tinto e alho, não esquecendo de se lhe cortar ao meio as orelhas e de lhe abrir os pezunhos, para melhor levarem o devido unguento.
Dá-se-lhe a volta para o pôr à feição dum faca bem afiada que, com a ajuda de um cutelo, de uma foice ou até de uma machada, lhe há-de por as tripas à mostra e abri-lo da cabeça ao rabo, para lhe tirar o fato.
Esta é a operação mais delicada, não vá alguma tripa rebentar e estragar o apetite a alguém mais delicado. Aberto o suficiente o animal, é-lhe retirado cuidadosamente o fato, desligando previamente as tripas e atando as suas extremidades.
Extrai-se primeiro o bucho e as tripas que são encaminhadas para a água corrente de modo a serem convenientemente lavadas e limpas para terem, também no sarrabulho, a sua utilidade.
Mas antes, desligam-se cuidadosamente as tripas umas das outras e retira-se o rodenho que vai ser usado para as chouriças de verde e para rojar e fazer pingue.
Em seguida tira-se de uma só vez a colada, conjunto das miudezas do porco constituídas pela língua, o coração, o fígado e o bofe ou pulmões, delícias preciosas que a seu modo hão-de acompanhar a nossa sarrabulhada. Os rins tirar-se-ão aqui também.
Tirado o fato completo, é cuidadosamente retirado, com a ajuda de uma concha, o sangue que se conservou sem coalhar na cavidade pulmonar do bicho e é junto ao restante ou conservado à parte, que há quem o aprecie em particular para o sarrabulho. Passa-se todo o sangue por um coador.
Convenientemente limpo, já sem entranhas, toma o peso ao animal, coloca-se numa velha e rija padiola, antigo instrumento de lavoura usado também para transportar erva ou mato.
Atravessa-se um dos fueiros do carro de perna a perna, preso no nervo anterior e passa-se-lhe uma corda. Em alternativa também se pode atar a corda directamente ao osso da bacia do animal. E lá vai ele, todo pimpão, para escorrer na adega durante a noite.
Em seguida puxa-se a corda e levanta-se o bicho segurando-o de cabeça para baixo no gancho apropriado do tecto da adega e junta-se-lhe a colada. É tarefa para uns homens, conforme o seu peso, mas porco que não tenha umas boas seis arrobas ainda é novato para estas andanças.
Decora-se então com uns ramos de loureiro, que mesmo na morte há que ter brio no bicho e não deixar que as moscas o conspurquem.
Entretanto as mulheres ou os homens, se os houver, já trataram de lavar devidamente o bucho e as tripas, retirando-se-lhes as imundices. As tripas são viradas do avesso e esfregadas numa pedra com sal e limão. Depois reviram-se novamente e deixam-se algum tempo a marinar com sal e limão para que se lhes saia algum cheiro que queira persistir.

1º. Dia – os preparos

Passados os maus cheiros, pica-se muito miudinhas várias cebolas, uns alhos, uns ramos de salsa e rodenho quanto baste. Tudo bem picado, juntam-se a estes elementos sal, pimenta, e algum sangue e mistura-se bem.
Ata-se uma ponta de uma tripa fina e a mistura atrás obtida é nela metida, apertando-se levemente a massa de modo a não forçar, que se não quer que a tripa rebente nessa ocasião, nem mais tarde ao cozer. Guardam-se então estas chouriças de verde porque estão quase prontas.
Deita-se uma quantidade substancial de farinha de milho com algum sal, pimenta e cominhos na maceira de amassar o pão e mistura-se bem. Enfarinham-se algumas tripas nessa mistura. Viram-se depois com a ajuda de uma varinha de loureiro. Já estão preparados os farinhotos.
Chouriças de verde, farinhotos e o bucho deita-se tudo junto para cozer numa panela com água já a ferver.
À farinha milha da maceira junta-se alguma farinha centeia, um pouco de cebola e salsa cortadas miudinhas, pimenta e cominhos e mistura-se bem. Junta-se-lhes água da panela que cozeu as chouriças, escaldando a farinha e amassando como quem faz pão.
À massa assim obtida junta-se sangue, amassando sempre. Obtida uma massa homogénea, enrola-se com as duas mãos em pequenos cilindros que se passam em farinha de milho seca e vão para cozerem na mesma panela em que se cozeram as chouriças. Estão prontas as belouras ou boletos.
O sangue coalhado, dito verde, que está num alguidar é cortado à faca e é introduzido com algum sal na água a ferver de uma outra panela. Para que este verde fique bem poroso, introduz-se um ferro, previamente em brasa, nessa água e mexe-se chamando pelo dito porco: russo, russo, russo …
(Esta será mesmo crendice, mas não faz mal a ninguém acreditar nela).
Estando pronto e devidamente cozido é tudo posto a arrefecer na maceira em cima de ramos de loureiro, e à espera das cozinheiras do dia seguinte.

2º. Dia – a sarrabulhada

Na manhã seguinte, bem cedo, há que descer o dito cujo para cima de uma mesa e passar à tarefa de separar as suas partes mais nobres. Primeiro decapita-se o bicho que a cabeça é a sua parte mais dura. Mais tarde divide-se em pelo menos duas partes iguais, com cada uma a sua orelha.
A seguir corta-se também ao meio o resto do animal com uma boa faca, um cutelo ou uma machada. São retirados os dois presuntos que vão direitinhos para a salgadeira. Retiram-se também as mãos, os chamados presuntos da pá, que podem ter o mesmo fim.
Em seguida desossa-se a carne que cobre as costelas e retiram-se o lombo e os lombelos. Se a fome já apertar e houver uma boa braseira já a fumegar, cortam-se umas fêveras, deita-se-lhes algum sal e põem-se a assar. Para matar o bicho, que a manhã ainda é grande, comem-se bem assadinhas com uns nacos de broa de milho e um verde branco para regar.
Depois é deixar as cozinheiras tirar aquilo que lhes aprouver, que o resto fica para fazer chouriças de carne ou vai para a salgadeira. Elas já tiveram também que fazer o seu trabalho. Ir ao galinheiro buscar uma boa galinha, de pele amarelinha, bem rechonchuda, que esteja a pôr ovos na ocasião e, claro, dar-lhe o mesmo fim.
O arroz de sarrabulho à boa maneira minhota leva a sua parte de pernante, de cornante e de foçante. Já temos o pernante e o foçante, o cornante é melhor ir ao talho: lerca, lombelo, óculo ou vazio grosso, também chamado fralda ou aba, ou simplesmente capa da costela resolvem o problema.
À dispensa vai-se buscar um bom chouriço de carne caseiro que se fez das fêveras que “sobraram” do sarrabulho da anterior matança do porco. E vamos para o lume, que vão sendo horas.
Numa boa panela aquece-se água e espera-se que ferva. Junta-se-lhe uma cebola espetada com cravinho, louro, sal, pimenta, salsa e, claro, as carnes: peito da galinha, a carne de vaca, parte da colada do porco, ossos de suão, chouriço de carne.
Estando tudo bem cozido retiram-se as carnes e desfiam-se todas, excepto a colada que vai ter, dentro do sarrabulho, outro fim. A água do cozido é coada para que não fiquem eventualmente fragmentos de ossos e restos dos condimentos.
Tempera-se com um pouco de noz moscada e deita-se-lhe o arroz carolino. Estando este quase cozido é que se lhe vão juntar as carnes desfiadas, o sangue, os cominhos e o sumo de limão. Rectifica-se o sal e os restantes temperos.
Para a rojoada corta-se carne fresca de fêvera de porco em quadrados, junta-se entrecosto em pedaços e tempera-se tudo com pimenta e pimentão-doce, sal, louro, alho e vinho branco. Faz-se esta marinada logo que possível para que a carne possa ficar umas horas a ganhar gosto.
Num forno põem-se batatas a assar com banha ou azeite, sal, pimenta e pimentão-doce, cebola, salsa e louro. No mesmo forno põem-se também umas castanhas, se for tempo delas, que depois de assadas se descascam.
Se não houver forno, as batatas são alouradas num tacho. Se só houverem castanhas congeladas, se estiverem lancetadas, põem-se a fritar num tacho cobertas de óleo. Noutro tacho com um pouco de banha e azeite bem quentes deita-se a marinada que estava a ganhar tempero e mexem-se os rojões repetidamente.
O fígado, o coração, o bucho, o verde e as belouras são cortados em fatias. Juntam-se às chouriças de verde e aos farinhotos para serem todos passados num tacho com banha ou azeite. Corta-se o boche em pedaços pequenos.
Decora-se uma travessa com os rojões, o entrecosto, as batatinhas, as castanhas, as fatias de fígado, o coração, o bucho e o verde, os pedaços de boche e as rodelas de belouras, as chouriças de verde e os farinhotos. Encima-se a decoração com umas rodelas de limão e salsa.
Numa terrina deita-se o arroz bem soltinho, acabado de cozer, e decora-se com uma rodela de limão e um molho de salsa. Come-se logo bem quente, antes que arrefeça. É de fartar, vilanagem!