sexta-feira, 21 de abril de 2006

Do rural ao urbano há um fosso crescente

Com o tempo tem-se alargado o fosso entre o mundo rural e o mundo urbano. A adaptação do mundo rural às novas condições, impostas por factores internos e externos ao país que fogem ao seu controlo, tem sido lenta e fragmentada.
A pulverização da propriedade da terra, a falta de acumulação de capital, malgrado as ajudas comunitárias, o controlo do mercado em oligopólio, faltando um mercado concorrencial para a pequena produção, a procura de aplicações mais rentáveis, inviabiliza o aparecimento de unidade rurais economicamente viáveis.
Se actualmente há unidades rurais produtivas noutros meios, aqui elas são dificilmente estruturáveis com o dimensionamento e a dispersão existente. E de qualquer modo, mercê da mecanização e até da automação já existente, a agricultura exige muito pouca mão-de-obra em relação à necessária nas antigas unidades de igual produção.
O trabalho rural tem sido de tal modo depreciado que os trabalhadores do campo têm vindo a abandonar a terra e a oferecer a sua força de trabalho noutras profissões e noutras paragens. Poucos já conseguem trabalho agrícola nas novas condições de mercado.
A auto-subsistência não é mais possível. As exigências são muitas e para as concretizar é necessário o vil metal. O trabalho na construção civil, juntamente com o têxtil ou equiparado, é a alternativa para o maior número.
Se muitos mantêm o local de residência diária no mundo rural é porque ainda conseguem trabalho relativamente perto. Se a sua residência já só é para o fim-de-semana então é porque têm de ir trabalhar para a Espanha ou para as Capitais.
A agricultura tornou-se uma actividade de part-time ou de fim-de-semana. E, se mesmo assim, feitas as contas, as pessoas vêem que têm prejuízo directo, a maior tentação é mesmo a de deixar de trabalhar e de se preocupar com as terras.
Se isto não acontece é porque as pessoas entendem aquele trabalho como distracção, desporto ou prezam demasiado a beleza dos locais para se deixarem ver rodeados de matos e silvados. Ou os subsídios da Comunidade, benesse dos agricultores mas cancro do sistema comunitário, são compensatórios, o que mesmo assim é problemático.
Muitas terras já estão ao abandono porque não dão rendimento, os seus proprietários estão velhos ou não têm gosto em enterrar dinheiro para realçar a beleza ou são parcelas demasiado pequenas, pouco férteis ou estão muito afastadas da residência habitual. Ou entendem que as obrigações conexas aos subsídios não são para se cumprir.
Por outro lado quanto maior é a nau maior é a tormenta. Das antigas quintas, das quais muitos proprietários residiam noutras terras e que eram trabalhadas por caseiros, já muitas estão ao abandono porque não dão fruto sequer para um dos parceiros no seu rendimento.
A reconversão para a produção de vinho não deu os resultados pretendidos por via das dificuldades de comercialização derivadas tanto de factores exteriores como dos próprios erros cometidos.
O cultivo de forragem e milho para a produção de silagem para alimento do gado é uma actividade rentável mas igualmente com poucas contrapartidas para o proprietário dos terrenos.
Muitas experiências que se têm feito nos modos de produção e nos produtos a produzir redundam invariavelmente em fracassos ao fim de poucos anos e as culpas são atribuídas ao clima; à dificuldade de comercialização mas nunca se chegam verdadeiramente a determinar.
A invasão do campo pelo capitalismo periférico tem redundado na sangria dos últimos recursos ou no investimento sumptuário e ostentatório, daquele que é comum se dizer que não vai além da terceira geração. Isto dá ideia de um falso progresso que não sendo auto-sustentável tem os dias contados.
Hoje já não são os brasileiros enriquecidos no tráfico de escravos e nos engenhos de açúcar que regressam ricos e querem deixar marcas na paisagem que já era a sua. Hoje são novos-ricos, sem ligação à terra, vítimas da nostalgia de um local não definido, tentando um enraizamento serôdio e que já não chega a dar frutos duráveis.
A economia mercantil arrasou uma vivência milenar. A recriação desse mundo já hoje se não consegue sequer ao nível do folclore. As pessoas podem ser ensinadas a transportar uma sachola mas mal. Mas já não conseguem sentir o impulso, imprimir o ritmo de quem vai com elas trabalhar. Muito menos consegue com elas trabalhar da forma harmoniosa de antigamente.Aqueles que se vêem agarrados à terra por opção ou por ser tarde para mudar de vida já se não conseguem enquadrar devidamente num panorama em que à perda dos ritmos naturais se sucedeu a competição mais desenfreada, onde à humildade se sucedeu a arrogância.

sexta-feira, 14 de abril de 2006

Um mundo rural em permanente mudança

Já vão uns anos que o carácter edílico do panorama rural dominante no nosso meio se alterou significativamente e em alguns aspectos radicalmente. Chamava-se nos compêndios à agricultura que se praticava de promíscua e de auto-subsistência.
Efectivamente tudo se misturava e chegava-se a ver cinco patamares de diferentes culturas cujos frutos tinham diferentes naturezas. Cultivava-se o feijão rasteiro, o milho, havia uma latada de vinha, por cima uma oliveira e ainda, imaginem, uma nogueira mais alta.
Não era a perfeição mas tinha-se um pouco de tudo. E pouco mais se cultivava. Havia algum centeio, forragem para o gado, tremoço, batata, cebola e algumas outras curiosidades, mas em lugares específicos e em quantidades tais que só garantiam a auto-suficiência.
Havia o gado, em especial vacas, tantas quantas a dimensão das terras cultivadas e das pastagens naturais o permitia. Eram o pé-de-meia mesmo quando eram a meias ou a ganho. E os mais abastados tinham o seu garrano.
Ovelhas ou cabras em pouca quantidade e algumas galinhas, tantas quantas dessem os ovos para a Páscoa do padre. Por vezes algumas outras aves, como perus, patos ou faisões para o curandeiro e o porquinho para o próprio agricultor se mais remediado.
Assim foi durante séculos, depois da vinda da batata e do milho de maçaroca, que antes, presumimos, a vida era ainda mais difícil.
As relações laborais eram simples. Trabalhavam-se primordialmente os bens próprios que em muitos casos eram poucos ou nenhuns. Então era-se criado, jornaleiro ou caseiro, o que dependia muito da distribuição da propriedade.
Só podia ter criados quem já tivesse alguns bens. Só podia recorrer a jornaleiros quem ultrapassava o patamar da auto-subsistência. Só podia ter caseiros quem não precisava de trabalhar ou quem tinha tantas terras que lhe era de todo impossível trabalhar todas.
Nos locais em que imperava a entreajuda havia uma distribuição mais equitativa da propriedade. Aí não havia jornaleiros mas também não havia no geral criados e poucos caseiros. Os caseiros recebiam e davam colaboração em igualdade com os outros. Se havia criados eles trabalhavam pelo patrão.
A economia só era mercantil no excedentário. Não se valorizava excessivamente o dinheiro embora ele valesse ouro. Do que se exportava o mais relevante eram as pessoas. Essas valiam ouro noutros lugares.
Forneciam-se pessoas para as cruzadas, para os descobrimentos, para os “Brasis”, as Américas e, por último, para as “Franças”. Dos primeiros quase nem rasto ficou. Dos últimos perde-se cada vez a ligação, principalmente em relação às gerações nascidas na emigração.
Os que cá foram ficando foram mantendo o jardim, harmonioso aos nossos olhos, belo aos olhos de que não está habituado a tanta exuberância. Os velhos ou as crianças com a vaquinha a pastar, as lavradas ou avessadas com vacas ao arado e lavradores à sachola.
Nas colheitas, fossem desfolhadas ou vindimas, era uma festa que podia continuar pela noite. Todas as actividades que envolviam muitas pessoas eram vistas com a alegria de quem se encontra com os amigos e os quer receber bem. Ponha-se a mesa com tudo que de melhor havia disponível em casa do lavrador, quer fosse abastado ou não.
O tempo das pessoas era o tempo do lugar, era o tempo natural medido em dias e épocas, em sóis e estações. Havia uma harmonia quase perfeita só posta em causa em épocas de calamidades naturais, como secas ou excesso de chuva, em acalmias excessivas ou vendavais tempestuosos.
Esta foi uma imagem que perdurou e que tinha a sua razão de existir, embora não tivesse em conta os naturais conflitos, as exageradas dependências em que muita gente vivia.
A posse da terra e da água, a utilização dos baldios e dos caminhos, tudo era fonte de litígio permanente. Havia fracturas sociais, mais frequentes as divisões transversais do que aquelas mais gravosas que resultassem de cortes feitos horizontalmente.
Os grupos que se formavam até tinham o efeito positivo de contribuir para a criação de uma espírito de entreajuda favorecido pela sua transversalidade. Os seus efeitos negativos podiam porém dar origem, embora esporadicamente, a incidentes cuja gravidade dependia da dimensão dos grupos envolvidos.
Claro que isto não chega, nem é lembrado, no sentido de denegrir uma imagem que se quer pura ou sem grandes máculas. Essa imagem, mesmo com esses dissabores, é que já não tem correspondência à realidade de hoje, muito menos humana, mais contagiada por realidades mais vastas, mais impessoais e com outras dinâmicas.

terça-feira, 11 de abril de 2006

Até os velhos se vão embora

Há uns largos anos atrás havia a ideia de que a grande maioria dos velhos antes queria viver e morrer com as privações de sempre na sua terra do que viver e morrer rodeado de todas as benesses deste mundo em qualquer outro local. E, efectivamente, isso correspondia à verdade.
Nos anos mais recentes, paulatinamente, tudo se alterou. O desenraizamento, que antes atribuíamos aos jovens, como um mal de que as novas gerações eram vítimas, atingiu também a idade mais madura. Todos os lugares são bons desde que aí uma pessoa se sinta bem é agora o lema.
Claro que até isto é difícil de encontrar porque se pretende generalizar a ideia, já não estranha ao pensamento das pessoas, de que os velhos são um fardo, de que são um encargo excessivo para o Estado, de que são um peso morto para a exaltação do hedonismo que se quer prevalecente na sociedade.
Se a economia não é de todo estranha a esta ideia, surgem cada vez mais jovens repentinamente alcandorados a posições relevantes na máquina do Estado e na comunicação social, patrocinados pelo lobbying exercido pelos bancos e até por instituições que deveriam ter carácter social, a denegrir a imagem da velhice.
Claro que há também quem procure inserir os velhos naquela visão mais hedonística da sociedade, com algum benefício colateral, mas descurando outros valores colocados em evidente declínio.
O Estado utiliza aquele discurso em seu favor, já que o seu objectivo deixou de ser contribuir para a harmonia social e para o bem-estar da sociedade tal qual ela existe e passou a ser a diminuição do investimento não reprodutivo, a diminuição dos custos, a subversão dos valores de modo a fazer prevalecer aqueles que implicam um menor custo.
É claro que há muitos factores a contribuir para a alteração da situação, como seja o aumento da esperança de vida, o aumento das exigências de conforto e condições de vida, a alteração nos relacionamentos económicos e sociais entre as pessoas.
E necessariamente o Estado é chamado a intervir na estruturação das redes que têm por objectivo o apoio à velhice, alterando-as e implementando novas redes. Ora o Estado é por natureza centralista e é minimalista quanto à extensão das suas redes. O Estado está pouco presente nos meios rurais.
O Estado é cada vez mais representado por gente urbana e cada vez mais por gente que no seu carácter urbano não incorpora valores que eram subjacentes a modos de vida rurais. A pacatez da entreajuda deu lugar à competitividade mais frenética.
Os jovens fogem cada vez mais novos do campo. Fogem pela televisão, pela Internet, pela escolarização, pela busca de trabalho. Se até há alguns anos fugiam sem especiais qualificações, hoje fogem para encontrar utilidade para as suas habilitações. A competitividade já aí chegou.
Hoje a riqueza já não está ligada à posse da terra arável. Esta é um bem transaccionado como qualquer outro e cujo rendimento se tornou muito contingente. No nosso meio só 20% da terra proporcionará rendimento efectivo. O restante terá que ser valorizado a nível da contemplação.
Mas, se os novos fogem do campo, porque os velhos vão ficar a contemplá-lo?
Se, em tempos, os velhos se agarravam aos seus bens e domínios era porque a eles sempre se tinham agarrado como garantia da sua sobrevivência. O amor à terra era o amor à vida. Quem tinha algo de seu era de igual modo respeitado na velhice.
Os pobres também tinham amor à terra porque sabiam que haviam valores de boa vizinhança e solidariedade que eram compartilhados de modo mais ou menos sincero e assumido pelas pessoas. E o seu mundo era a sua terra.
Os pobre velhos, ou melhor dizendo, os velhos pobres eram mais desprezados fora da sua terra. Aí vinham ao de cima os sentimentos mais egoístas e mais primários. As pessoas desresponsabilizavam-se pelo que não sentiam como seu, as suas obrigações tinham limites.
Os velhos ricos, se tinham necessidade ou gosto nisso, trabalhavam enquanto podiam e não podiam, mas tinham a garantia de que as suas terras iriam continuar a ser trabalhadas pelos seus filhos e pelos seus, tanto quanto era possível perscrutar no futuro.
Hoje os filhos têm outras ocupações mais rentáveis e não têm disponibilidade de tempo e muitos já não estão perto para dar continuidade a um trabalho milenar. As terras ficam cada vez mais abandonadas. Os velhos já não conseguem trabalhar os seus bens. Os novos estruturam a sua vida doutra maneira.
Ao desenraizamento dos filhos sucedeu-se o desapego dos pais. Perante a desvalorização das terras, com a utilização que sempre lhes foi dada, perante a alterações dos modos de vida e das relações sociais por si geradas, perante os apelos permanentes e generalizados a novas exigências, já nada os liga à terra.
Os velhos seguem o caminho dos novos, vão para a sua vivenda de jardim ou para o seu caixote na urbe, ou ainda para o asilo onde o colocam sem pejo. Seja pobre ou rico, já nada tendo para dar, com relações sociais destroçadas, resta reinventar a vida se ainda há vida para isso.
A ir e ir quanto mais cedo melhor, parece ser agora o lema. Os meios rurais, com a sua concepção tradicional, têm cada vez menos a dar aos novos e já nada a dar aos mais velhos.

terça-feira, 4 de abril de 2006

Uma feira de retalhos

As grandes feiras polivalentes são características das terras pequenas, dos pequenos aglomerados urbanos que têm à sua volta um povoamento disperso e uma população com liberdade bastante para gerir o seu tempo, quase ao ritmo da natureza. Os feirantes adaptaram-se ao esse ritmo das pessoas.
Um pequeno aglomerado urbano, por si, não consegue satisfazer as necessidades dos habitantes dele dependentes. Os próprios comerciantes locais, para terem sucesso, precisaram de se adaptar ao ritmo das feiras.
Em tempo, o Zé Alemanha, o Lopes Martins, o Teixeira, os ourives, tamanqueiros, funileiros, etc., no dia de feira expandiam o seu negócio para o local da feira. Era já a feira a submergir o comércio local.
À medida que aumentou o poder aquisitivo das pessoas, o comércio local não foi capaz de dar resposta capaz. Sem supermercados e grandes armazéns e mantendo-se sem alteração o ritmo das pessoas o que era harmonioso desenvolveu-se e tornou-se um monstro. A feira tudo levou de vencida.
A feira faz falta. Fará sempre falta. Como espaço de certa liberdade, de novidades e de velharias, dos preços competitivos e das coisas imprevistas. Mas não para nos engolir.
A função dos poderes públicos não é de deixar que as coisas se arrastem e possivelmente se resolvam por elas. È antes de intervir, regulamentar, estruturar, moderar ou estimular, de ter uma ideia clara e explícita e de gerir em conformidade com ela.
Esta Câmara não tem ideia do que anda a fazer. Digamos que patrocina uma certa anarquia organizada? Parece que é a mais condescendente apreciação que se pode fazer ao seu trabalho.
A sua actuação caso a caso, aos retalhos, deixa a gente confusa e as soluções ao cuidado do acaso. Quando se deixou tomar conta da Avenida dos Plátanos, alguém devia ser responsabilizado.
Mandaram-se as galinhas para S. João mas os ovos continuam no Largo de Camões. Sapatarias são mais de cinquenta e aparecem por tudo que é sítio. Bares sem qualquer espécie de higiene, atentados à saúde pública, proliferam como cogumelos.
Vendem-se produtos alimentares, como o bacalhau, um pouco por todo o lado. Só a feira tradicional de produtos do nosso campo é que definha. A título de falta de condições higiénicas, atrofia-se quanto se pode.
Noutros sectores o estado de saturação da feira é tal que os feirantes “matam” o negócio uns dos outros. Tanto faz, pois eles sempre levarão algum e no conjunto quase tudo. A feira é a sangria da nossa economia.
Só a Câmara ganha uns míseros patacos. Cobra taxas, mas tem que fazer o trabalho mais sujo. Acresce o seu património monetário mas deixa delapidar o património urbano. A lógica da feira não passa por aqui.
Cada ferro que se espeta nos nossos passeios é uma seta envenenada nos nossos corações. Todos têm direito à vida mas o direito dos velhos feirantes não é respeitado pelos novos invasores. Organizemos as coisas condignamente. Se sair alguém prejudicado, nós não somos nenhum fundo de garantia.
Faça-se planeamento capaz, ouça-se a gente interessada, a que vive e sente o pulsar do nosso meio e os especialistas que entendam do assunto. Controle-se o que houver que controlar e cortem-se as arestas, os abusos.
A feira actual já está a léguas da tradicional. A feira de retalhos tornou-se um monstruoso supermercado ao ar livre, inamovível. Perante a impossibilidade de regressar aos padrões antigos, só há uma solução: Mover o monstro.
Há vinte anos que isso está pensado. O que falta para concretizar?